Os lindos vão para o inferno

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Tenho certeza de que a beleza deveria ser considerada um pecado capital. Ou melhor, teria que ganhar o título de pecado universal. O primeiro de todos. Os demais seriam apenas decorrentes da lindeza em demasia. Cheguei a tal conclusão depois de ver as reações ouriçadas de homens e mulheres diante do sorriso perfeito e dos olhos claros do novo secretário de saúde do Distrito Federal, Humberto Lucena, empossado na última semana. Pelas manifestações na internet, poucos estavam interessados no currículo do médico/advogado, mas quase todos aprovaram a imagem do bonitão. Com todo respeito à dona do coração dele, o moço é bonito de verdade e joga por terra a tese de que beleza é conceito subjetivo. Existem, sim, casos de unanimidade.

 

Quando se é bonito demais, você se torna culpado pelo pecado alheio. A perfeição de um indivíduo provoca inveja do outro. No fundo, todos querem ser admirados. Aí, você passa a vida despercebido e chega um danado do rosto irretocável e se torna merecedor de todos os olhares e comentários de outrem, sem precisar fazer absolutamente nada, apenas existir. Simetria da cara e contornos perfeitos do corpo provocam a ira de quem não teve a mesma sorte de nascer com genética tão privilegiada. Diante dos suspiros do companheiro (a), mobilizados pelo bonitão/bonitona ao lado, quem não fica com uma pontinha de raiva ou de ciúme? Garanto que o (a) parceiro (a) do objeto de desejo também se corrói por dentro ao ver que o amor dele (a) causa tanto alvoroço.

 

A quase perfeição física desperta a luxúria e o desejo. Ninguém manda no pensamento do vizinho, muito menos o dono da beleza. Ele não tem como controlar os desejos que incita e vai ter que lidar com as miradas gulosas e lascivas. Fazer o quê? Há muito já virou clichê o ditado que diz que o bonito foi mesmo feito para olhar.

 

E há quem se torne vítima do próprio reflexo benfeito diante do espelho. Alguns não contêm o orgulho por terem traços desenhados com capricho. É aí que vaidade vira um pecado, pode ofuscar outros predicados do lindo e limitar a personalidade da pessoa à própria imagem externa.

 

O belo mobiliza. E não precisa se esforçar. Se há os que detestam chamar a atenção, essas pobres criaturas quase perfeitas não conseguem escapar dos olhares de admiração. E também dos de ódio, de inveja, de cobiça… Foram agraciados com um dos bens mais perseguidos pela maioria das pessoas atualmente: a simetria, a harmonia e a primazia das formas. Mas pagam o preço por terem sido escolhidos para exibir tantos atributos: ou os amam ou os odeiam. São sujeitos binários: despertam a admiração de uns e a repulsa de outros. Afinal, belezura em excesso dói.

 

A falta dela também provoca estranhas sensações. Encontrei um amigo, logo depois de ele se sentar, durante um voo, ao lado de uma moça que definiu como “nunca vi pessoa tão feia na minha vida.” O tom dele não soava como crítica, mas tinha, sim, uma dose de compaixão. Ele estava mesmo sensibilizado com a impossibilidade de atribuir adjetivos ao físico daquela garota. Ao final da descrição da feia, me perguntou: “Ela vai encontrar alguém que goste dela, não vai?”, como se um amor pudesse compensar o fato de ela ter nascido sem atrativos, sem um sorriso encantador, sem os olhos chamativos ou sem um corpo invejável.

 

Não soube responder, mas, no fundo, torci para que a carência de qualidades físicas não fosse motivo para abalar a autoestima e o amor próprio da mulher da qual desenhei um rosto malfeito na cabeça. Dizem que,  para conquistar o amor e a felicidade, beleza pouco importa, mas, por outro lado, desconfio que não deva ser um problema ter nascido com uma aparência acima da média. Li uma frase, atribuída ao pensador alemão Johann Wolfgang von Goethe, na exposição ComCiência, da artista Patricia Piccinini, cujo objetivo das obras é justamente questionar “a percepção e a construção do belo”. Goethe dizia: “Beleza é um convidado bem-vindo em qualquer lugar.” Acho que sou obrigada a concordar.