A “novata veterana” da delegação paralímpica de natação do Brasil fala com tamanha empolgação do último ano que é impossível não se contagiar. Portadora de uma anomalia congênita no nervo óptico chamada Morning Glory, Maria Carolina Santiago debutou em competições paralímpicas internacionais apenas aos 33 anos, em abril de 2019, na classe S12 (atletas de baixa visão acentuada) do Open Internacional. Em menos de uma temporada completa, tornou-se campeã mundial e esperança de ouro nos Jogos de Tóquio-2020.
O sotaque ao falar não nega a origem. Nascida em Caruaru, interior pernambucano, e criada no Recife, Maria Carolina descobriu tarde que podia se enquadrar no esporte paralímpico. Mas a natação é uma antiga conhecida. Além de ter um irmão que foi nadador, ela não podia praticar esporte de impacto. Por causa da grande sensibilidade que tem na retina, qualquer pancada na cabeça pode acarretar na perda da pouca visão que a pernambucana tem.
“Sempre nadei para manter o meu físico, e era uma forma de me colocar à prova. Para mim, a natação sempre foi uma forma de superar o meu medo”, conta. Aventurou-se inclusive em travessias em águas abertas com grupo de amigos da natação. Certa vez, desvencilhou-se sem querer da pessoa que a acompanhava e ficou perdida no meio do mar, sem saber para qual lado nadar. A angústia durou até aparecer uma voz conhecida, que terminou o trajeto com ela.
Também participou do Troféu Brasil Maria Lenk, uma das principais competições da natação convencional. Apesar de ser íntima das águas, não conhecia o esporte paralímpico. “Achava que era uma categoria só, e eu não tinha interesse.” Foi quando os colegas do clube Grêmio Náutico União, do Rio Grande do Sul, lhe sugeriram fazer os exames para saber se era apta para competir na categoria adaptada.
Por isso, ela se identificou tanto com o apelido. “Sou realmente uma novata em um grupo que estava treinando a todo vapor desde 2019. Mas, ao mesmo tempo, sou veterana, porque cheguei nadando”, pontua. Maria Carolina enxerga apenas vultos com o olho esquerdo e não tem visão periférica no olho direito, apenas focal.
Preparada para ser campeã
“Escutei que eu estava muito velha e pensava que meus tempos não seriam melhores do que os de quando eu era nova”, lembra. Os técnicos da Seleção Brasileira paralímpica discordaram. Desde quando Carol chegou no Centro de Treinamento Paralímpico de São Paulo, em 2018, ela foi preparada vislumbrando Jogos Parapan-Americanos, Mundial e possivelmente as Paralimpíadas de Tóquio. “Hoje eu nado muito abaixo dos tempos que eu fazia quando mais nova”, comemora.
No primeiro campeonato internacional que disputou, quebrou dois recordes mundiais e saiu como um dos principais nomes do Open Loterias Caixa de Natação, em abril de 2019, em São Paulo. Em agosto, conquistou quatro ouros nos Jogos Parapan-Americanos de Lima-2019 e, em setembro, dois ouros e uma prata no Mundial de Natação Paralímpica de Londres-2019.
Na adolescência, Maria Carol passou por um período difícil. Ela teve água na retina e ficou completamente sem enxergar. “Eu não conseguia nadar, porque não confiava que não bateria em alguma coisa. Foi uma época muito ruim da minha vida, que eu nem gosto de comentar”, lamenta. Após 10 anos longe da piscina, resolveu voltar a nadar aos 27 anos no clube Grêmio Náutico União, do Rio Grande do Sul, onde foi apresentada ao esporte paralímpico e que defende até hoje.
Organismo feminino em evolução
Os planos para a novata veterana Maria Carolina Santiago eram ousados e começavam pelos Jogos Parapan-Americanos de Lima-2019. Mas ela apresentou problemas hormonais durante a competição na capital peruana. Naquele momento, percebeu a sensibilidade e o profissionalismo do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) de enxergá-la como um “organismo feminino”.
“Quando comecei a apresentar dificuldades por causa de hormônios, a comissão técnica não tratou como uma besteira, uma frescura. Pelo contrário, procurou uma ginecologista do esporte que me avaliou, um nutricionista, porque que eu estava baixando muito de peso nos treinos. Viram-me mesmo como mulher e me possibilitaram chegar onde eu cheguei”, avalia.
Carol se emocionou ao ouvir pela primeira vez o hino brasileiro de cima do pódio e desfrutou o momento mágico por quatro vezes no Parapan. Foi ouro nos 50m livre, nos 100m livre, nos 100m costas e nos 400m livre. “Eu nunca havia vivido aquela emoção. Achei que não fosse chorar, porque sou meio seca na preparação para aguentar tudo até o fim. Mas quando escutei o hino, percebi que não dava para segurar”, conta.
Muito choro de alegria ainda estava guardado para o Mundial de Londres-2019. Primeiro, com a prata nos 100m costas, após nadar sem os óculos de natação, por causa do incômodo com a luz do teto do parque aquático. Por isso, teve de competir com o tapper, treinador que auxilia o nadador cego com um bastão para comunicar que a borda da piscina está próxima no momento da chegada. “Na hora que recebi a medalha, disse que aquela era a maior emoção da minha vida. O meu tapper respondeu que não era, ainda não”.
No dia seguinte, Maria Carolina venceu a russa Anna Krivshina, por apenas 1 centésimo à frente nos 50m livre em uma final eletrizante. “Realmente, a maior emoção da minha vida era essa. Quando o hino brasileiro começou a tocar, eu só pensava que tinha deixado tudo na piscina, estava realmente muito satisfeita e feliz por ter feito a minha parte. Até então todos tinham feito a parte deles na preparação”, alegra-se. Carol ainda fechou a principal competição do ano passado com outro ouro nos 100m livre. A brasileira e a russa prometem travar novamente disputas emocionantes em Tóquio-2020.
Entenda a modalidade
A natação paralímpica abrange os nados livre, costas, borboleta, peito e medley. A piscina segue os mesmos padrões olímpicos. As baterias são separadas de acordo com o grau e o tipo de deficiência. As adaptações são feitas nas largadas, viradas e chegadas. Os nadadores cegos recebem um aviso do tapper, por meio de um bastão com ponta de espuma quando estão se aproximando das bordas. As classes começam com a letra S (swimming, que significa natação em inglês). De S1 a S10, são atletas com limitações físico-motoras. De S11 a S13, com deficiência visual. E S14, com deficiência intelectual.
Quem é ela
Nome: Maria Carolina Santiago
Modalidade: natação – classe S12 (baixa visão acentuada)
Idade: 34 anos
Naturalidade: Caruaru (PE)
Principais títulos: ouro nos 50m e 100m livre e prata nos 100m costas no Mundial Paralímpico de Londres-2019; ouro nos 50m e 100m livre, nos 100m costas e nos 400m livre nos Jogos Parapan-Americanos de Lima-2019
Curiosidade Olímpica
As primeiras mulheres brasileiras a disputar os Jogos Paralímpicos foram Beatriz Siqueira, na natação e no lawn bowls (uma espécie de bocha sobre grama), e Maria Alvares, no tênis de mesa e no atletismo. Elas competiram na edição de Toronto-1976, no Canadá. O Brasil havia estreado nos Jogos em Heidelberg-1972, na Alemanha. As Paralimpíadas se originaram em Stoke Mandeville, na Inglaterra, como uma forma de reabilitar militares feridos na Segunda Guerra Mundial. Oficialmente, porém, a primeira edição dos Jogos Paralímpicos ocorreu na cidade italiana de Roma, em 1960.