Usurpada, Bola de Ouro premia gestos obscenos e mina combate ao racismo

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“O sistema é f…”. A frase de Wagner Moura (Capitão Nascimento) no filme Tropa de Elite resume em uma linha a 68ª edição da Bola de Ouro. Mas vamos a outras necessárias linhas a mais…

Era uma vez, o prêmio individual mais antigo do futebol. Criado em 1956, ostentava também a pose de mais respeitado até abrir mão da essência e ceder às pressões.

Pressões como testemunhar novos gestos obscenos do goleiro Dibu Martínez em campo na festa da conquista da Argentina na Copa América deste ano, nos Estados Unidos, e até a participação dele nos cantos racistas direcionados aos franceses, e mesmo assim premiá-lo pelo segundo ano consecutivo o melhor do mundo na posição. Parabéns aos envolvidos que acham os recorrentes atos engraçadinhos e dignos do Olimpo.

Pressões como frear a consagração de um jogador negro engajado justamente na luta contra o racismo em nome da manutenção do status quo para manter as imagens da Fifa e da Uefa incólumes.

A conqusita de Vinicius Junior seria retratada como a vitória de um homem só contra um gigante chamado racismo no esporte mais popular do mundo. Mas, como diria o Capitão Nascimento no trecho citado no início deste post, esse recado não interessa ao sistema.

A ordem no Théâtre du Châtelet, em Paris, era celebrar o que se passa dentro das quatro linhas e ignorar atos e ativismos fora dele. Vencedores da noite em Paris, Rodri, Aitana Bonmatí e Lamine Yamal não têm culpa disso. São simplesmente atores de um prêmio usurpado.

A Fifa criou a cerimônia de gala dela em 1991. Foi batizada de World Player of the Year. A entidade máxima do futebol fazia uma esforço danado para torná-lo respeitado porque a Bola de Ouro a superava.

Um dia, cansado de ser o organizador de uma festa genérica desvalorizada pela original, Joseph Blatter decidiu fazer a proposta indecorosa de fundir a Bola de Ouro e o Fifa Player of The Year. A sedução do poder picou o Grupo Amaury, dono da revista France Football e do diário L’Équipe.

A parceria nasceu morta. Durou pouco. De 2010 a 2015. Cometeu erros grosseiros como a entrega do prêmio de melhor do mundo a Messi — e não a Iniesta — na temporada de 2009/2010. O espanhol havia levado La Roja ao título inédito da Copa do Mundo na África do Sul. Messi caiu nas quartas e sequer chegou à final da Champions League naquele ano. A Internazionale conquistou o título contra o Bayern de Munique.

Gianni Infantino assumiu a Fifa e anunciou o divórcio. Vaidosos, os dois prêmios se separaram. A Bola de Ouro voltou à vida como ela era, e a entidade máxima criou o Fifa The Best. A prova de que o evento jamais honrou o superlativo é a nova mudança de nome: Fifa Awards a partir de 2024.

Fatalmente por ciúmes e guerra de vaidade. A Uefa, cujos filiados são inimigos do Super Mundial de Clubes, copiou a Fifa e uniu-se à France Football para promover a Bola de Ouro. Nos bastidores, há uma guerra fria e velada de uma tentando desqualificar a outra. O vazamento do resultado da Bola de Ouro tem tudo a ver com essa queda de braço.

A primeira versão da nova união nesta segunda-feira deveria ser perfeita, porém foi uma lástima. A Bola de Ouro mais uma vez abriu mão da essência. Mudou regras para agradar à Uefa e caiu na cilada. O plano era manter o sigilo absoluto sobre o vencedor do prêmio. Vê-los sentados lado a lado até que o vencedor se levantasse. Bonitinho como acontece no Oscar, sabe.

Apenas um homem sabia quem seria coroado: Vincent Garcia, o editor-chefe da revista France Football. Ele recebeu a totalização dos votos dos 100 jornalistas integrantes do colégio eleitoral e até adiou a edição e a publicação da publicação oficial do evento. Até o ano passado, a revista especial saía no dia seguinte ao evento. Na manhã de ontem, Garcia tinha uma missão discretíssima: passar a lista final ao produtor da festa, cujos direitos de transmissão foram comercializados para 170 países. Marc Lass recebeu o ranking final para tomar as devidas providências cerimoniais. O Real Madrid também. Por quem? Eis a pergunta que não quer calar.

Vinicius Junior soube como funciona o sistema de uma forma cruel. Estava prontinho para viajar, como confirmou o estafe do jogador ao blog Drible de Corpo, mas o poderoso chefão Florentino Pérez, que não aceitaria mais uma derrota 48 horas depois de perder por 4 x 0 para o Barcelona no Santiago Bernabéu pelo Campeonato Espanhol, cancelou o voo para 50 pessoas.

O atacante obedeceu. Frustrado, ficou na capital espanhola. Vítima de peitar o sistema na incansável luta contra o racismo. Vinicius Junior perdeu porque parte dos jurados é contra ou ignora a causa dele. Acham que, no mundo da bola, não há preconceito ao preto.

Há, sim. No último sábado, o jovem Lamine Yamal sofreu injúria da torcida do Real Madrid no Estádio Santiago Bernabéu na derrota por 4 x 0 para o Barcelona. Quem comprou a briga do jogador eleito revelação da temporada? Vinicius Junior cobrou a torcida merengue.

Parte da Europa se revolta com atitudes como a de Vinicius Junior. Uma fatia dela representada pelo voto não somente de jornalistas do Velho Mundo, mas dos 100 países melhores classificados no ranking da Fifa de diferentes continentes.

Eleito número 1 do mundo pelo controverso colégio eleitoral da Bola de Ouro, o meia Rodri não tem culpa. Messi também não ao derrotar de forma surpreendente o prejudicado Erling Haaland na edição passada. Outro erro gravíssimo da Bola de Ouro.

Rodri joga muita bola em uma função desprezada e quase invisível. Longe de ser zebra, óbvio, porém o momento dele era merecido na temporada passada, não nesta. Por um erro recorrente dos jurados nesse tipo de gala: confundir desempenho em torneios como Copa do Mundo, Euro ou Copa América, com performance em uma temporada inteira. Os torneios de seleções têm prêmios próprios. Rodri ganhou o da Euro-2024 e os jurados distraídos caíram na cilada ao interpretá-lo como melhor da temporada de 2023/2024.

A tradicional Bola de Ouro sangra. Foi usurpada pela Fifa e pela Uefa. Antes só, como de 1956 a 2009, e de 2016 a 2023, do que mal-acompanhada. Perdeu o respeito não por causa da vitória de Rodri, um senhor jogador, mas pela renúncia à essência de 68 anos de história.

O prêmio fez bonito ao rever injustiças na linha do tempo, revisar o passado. Só tinha olhos para a Europa até 1994. Ignorava feitos fora dos limites geográficos do mundinho dela. Arrependida, homenageou Pelé, Maradona, mas virou refém da armadilha comercial. Fez péssimos negócios ao se irmanar com as ofertas de Joseph Blatter lá atrás, e de Aleksander Čeferin agora.

Em sentido oposto ao da Bola de Ouro, Vinicius José Paixão de Oliveira Junior cai de pé. Não abriu mão da essência do menino de São Gonçalo. Escolheu combater o racismo, usar a bola e o poder de influência que esta amiga lhe dá para dar voz ao sufocado povo preto. Filmes publicitários gravados para celebrar a possível coroação foram ao ao ar. A Nike cancelou uma ativação. Teve de trocá-la na última hora pela do cliente Rodri.

Os jurados que não se importam com a luta contra o racismo votam coroaram um goleiraço em campo, sim, mas obsceno e preconceituoso fora dele. Empurraram baixo do tapete. Alguns deles devem ter dito que isso pertence ao futebol. O alívio dos cartolas na triste noite no Théâtre du Châtelet foi passar a mensagem friamente calculada de que o ator negro liberiano George Weah, eleito número 1 do mundo em 1995, entregou o prêmio ao branco Rodri no mundo do faz de conta do futebol.

Enquanto isso, Vinicius Junior se manifestava nas redes sociais:

“Eu farei 10x se for preciso. Eles não estão preparados”.

Twitter: @marcospaulolima

Instagram: @marcospaulolimadf

TikTok: @marcospaulolimadf

Marcos Paulo Lima

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