Aos 52 anos, o mineiro de Carangola Jorge Ferreira da Silva, o Palhinha, vive mais um momento iluminado na carreira. Bicampeão mundial e da Libertadores pelo São Paulo nas edições de 1992 e de 1993 sob a batuta do mestre Telê Santana; vencedor da Copa do Brasil 1996 e da Libertadores 1997 pelo Cruzeiro; camisa 10 da Seleção na Copa América 1993 e um dos vice-artilheiros do torneio com três gols ao lado de Gabriel Batistuta, o ex-meia acaba de alçar o União de Almeirim ao Campeonato de Portugal, como é chamada a terceira divisão do Nacional com apenas dois anos de trabalho.
O time dele disputava uma das 20 competições distritais que dão acesso à Série C. Liderava o torneio da Associação de Futebol de Santarém com 10 pontos de vantagem sobre o vice até a paralisação devido à pandemia do novo coronavírus. A Federação Portuguesa de Futebol decidiu usar a média de pontos para decretar a competição encerrada e promoveu todos os 20 líderes distritais à Série C, que terá 96 clubes na temporada 2020/2021.
Na entrevista ao blog, Palhinha fala sobre o sucesso do União de Almeirim e o trabalho paralelo à frente do Boston City, que tem um time nos Estados Unidos e uma filial na segunda divisão do Campeonato Mineiro. O ex-jogador conta quando decidiu assumir o papel de empresário, investidor, dirigente e até de auxiliar técnico para colocar a mão na massa e fazer o projeto prosperar.
União de Almeirim à parte, Palhinha enche a bola do português Jorge Jesus e defende até que ele assuma a Seleção no lugar de Tite. Testemunha que o povo português só quer saber de Flamengo quando o assunto é futebol brasileiro tenta explicar por que os treinadores patrícios estão invadindo o mercado de trabalho da América do Sul.
Em meio à pandemia, Palhinha conta como Portugal tem enfrentado a crise sanitária e usa o exemplo do governo lusitano para fazer duras críticas ao presidente da República, Jair Bolsonaro. Ironiza o atual Chefe de Estado ao dizer que ele tomou o status de “mito” do goleiro Rogério Ceni, maior ídolo da história do São Paulo. Envergonhado com a situação no país, assume que aprendeu tudo errado no Brasil e aprendeu a ser correto quando morou nove anos nos Estados Unidos. Além disso, opina sobre a recente polêmica entre dois caras que ele conhece bem: Raí e Caio Ribeiro.
Como surgiu a ideia de assumir a faceta de empresário, investidor, dirigente?
Tive essa experiência nos Estados Unidos. Moramos nove anos lá e fundamos com um empresário brasileiro (Renato Valentim) um clube chamado Boston City. Jogávamos a quarta divisão. Fundamos um Boston City também em Minas. Está jogando a segunda divisão do Campeonato Mineiro. E nas categorias sub-15, sub-17 e sub-19 disputa a primeira divisão. Lá (nos EUA) eu já era o presidente. E aí, o Luiz (Antônio Duarte), que é meu sócio, a quem eu chamo de chefe maior por ser o principal investidor, era o presidente do Marília, em 2002, quando joguei lá. Eu estava no Peru (no Alianza Lima). Ele me contratou para a segunda divisão do Paulista e subimos o time para primeira.
Isso abriu caminho para a parceria…
A amizade ficou. Em 2002, ele foi me visitar nos EUA. Disse que estava querendo pegar um clube em Portugal na quarta divisão. Disse que daria trabalho porque começaria do zero. Explicou que era uma porta melhor para a Europa por causa da língua. Eu gostei da ideia. Abrimos uma SAD e fizemos uma parceria com o União de Almeirim. A gente cuida do profissional e o presidente do clube cuida da formação (base), como eles chamam aqui.
O que é montar um time para disputar a quarta divisão de Portugal?
Comecei a acompanhar os jogos do time aqui em dezembro de 2018 para fazer as escolhas. Separamos os jogadores, conversamos com eles sobre o objetivo, que brasileiros viriam para cá também para jogar, que montaríamos uma comissão técnica. Nossa proposta era trabalhar num campeonato amador com uma forma profissional de levar as coisas, dando condições a eles, alimentação, salário. Na quarta divisão tem isso, mas é ajuda de custo. A grande maioria trabalha, treina à noite. No Brasil, um cara da quarta é registrado como profissional. Aqui, não.
Você foi de tudo um pouco desde que chegou aí. Valeu a pena?
Trouxemos preparador de goleiro, roupeiro e preparador físico daí (do Brasil). Pegamos um técnico jovem, de 25 anos, que trabalhava no clube. Entrei para dentro do campo com ele e fazia de tudo. Botava roupa para lavar, arrumava, explicava o jeito que eu queria. Para quem fez tudo isso na carreira fica mais fácil.
Nossa proposta era trabalhar num campeonato amador com uma forma profissional de levar as coisas, dando condições a eles, alimentação, salário. Na quarta divisão tem isso, mas é ajuda de custo. A grande maioria trabalha, treina à noite. No Brasil, um cara da quarta é registrado como profissional. Aqui, não.
Deu tão certo que o União de Almeirim só perdeu dois jogos até a pandemia…
Começou o campeonato (regional da Associação de Santarém) e ganhamos 18 jogos seguidos desde o início. Igualamos o recorde do Porto e do Benfica em competições nacionais. Perdemos a 19ª partida, ganhamos a 20ª, perdemos a 21ª, e aí parou a competição. Ganhamos 19 jogos e perdemos dois. Estávamos 10 pontos à frente do segundo colocado. Depois de várias reuniões, chegaram a esse acordo de que teriam de subir (para a terceira divisão, como é chamado o Campeonato de Portugal), todos os primeiros colocados dos torneios distritais com base na média de pontos. Cada região tem o seu campeão, que são os 20 que subiram. Juntou com a quantidade que já estava lá (72), mais quatro rabaixados e a terceira divisão terá 96 equipes na temporada 2020/2021.
Vocês apostaram em muitos jogadores brasileiros?
Nós tínhamos nove jogadores brasileiros. O artilheiro do campeonato era nosso (Igor) com 18 e o vice também (Gábi), com 15. Além disso, tem jogador bom aqui, sim. Tem que ser melhor trabalhado na base. É o que falta aqui. Eles treinam pouco tempo porque dão prioridade à escola. A molecadinha treina aqui duas, três vezes na semana, à noite. Pouco, porque futebol é muita repetição. Não dá nem tempo de treinar o que é preciso e jogam aos domingos.
Como é a estrutura da quarta divisão de Portugal. Melhor que a do Brasil?
A estrutura é muito melhor. Hoje, nós temos o campo da prefeitura, que é sintético, nosso estádio com grama natural, com vestiário, fisioterapia, refeitório. É organizadinho. Falta o tempo ideal para fazer os trabalhos.
Estávamos 10 pontos à frente do segundo colocado. Depois de várias reuniões, chegaram a esse acordo de que teriam de subir (para a terceira divisão, como é chamado o Campeonato de Portugal), todos os primeiros colocados dos torneios distritais com base na média de pontos. Cada região tem o seu campeão, que são os 20 que subiram
A pandemia atingiu muito o futebol português? Faltará dinheiro na próxima temporada?
Atingiu em todos os sentidos. Parou tudo, acabou tudo. Financeiramente, pior ainda. O dinheiro some, né. Qualquer coisinha que entra é dinheiro. Você perde tudo. Mas a cidade comprou a ideia (do time). Estamos perto de Lisboa. Daqui até lá são 84km. Pertinho. Isso ajuda.
Quero falar um pouco sobre técnicos portugueses. Aqui na América do Sul, temos Jorge Jesus (Flamengo), Jesualdo Ferreira (Santos), Carlos Queiroz (Colômbia) e José Peseiro (Venezuela). Por que os treinadores lusitanos estão em alta na Europa e aqui no nosso continente?
Eles são inteligentes. Estudam, investigam tudo sobre os adversários, procuram melhores métodos, têm uma cultura refinada. A grande maioria jogou futebol, ou seja tem o cacoete. Por exemplo, o Jorge Jesus. Aí, todo mundo gosta dele, aqui também todo mundo gosta dele. Ele participa de tudo. É o cara que dá bronca, mas faz o carinho. Chama atenção, mas mostra como se deve fazer. Veja o (José) Mourinho. Todo mundo diz que ele é polêmico, mas aqui todos gostam dele. Eles frisam muito a parte tática, o posicionamento do jogador, colocam no quadro para o cara ver. Eles têm essa paciência de ficar fazendo vídeo, colocar no telão, repetir, coisa que os treinadores brasileiros não estão preocupados.
O que acha especificamente do trabalho de Jorge Jesus?
Aqui todo mundo só vê jogo do Flamengo. Quando se fala de futebol brasileiro, é o Flamengo. Está fazendo muito bem a ele, a Portugal, e ele não vai ter em outro lugar a mesma visibilidade que vem tendo aí no Brasil. Ele foi inteligente para fazer esse povo correr (risos).
Eles (técnicos portugueses) são inteligentes. Estudam, investigam tudo sobre os adversários, procuram melhores métodos, têm uma cultura refinada. Eles frisam muito a parte tática, o posicionamento do jogador, colocam no quadro para o cara ver. Eles têm essa paciência de ficar fazendo vídeo, colocar no telão, repetir, coisa que os treinadores brasileiros não estão preocupados.
Há quem defenda Jorge Jesus na Seleção Brasileira…
Eu não acharia ruim, não. O Tite deu o que tinha que dar. Chega uma hora em que técnico não tem como passar do limite. Não conheço o Jesus pessoalmente, mas o Márcio (Sampaio), um dos assistentes dele, é daqui de Almeirim. Assistiu até a um jogo nosso. Ele fala super bem do homem (Jorge Jesus). Pelo que ele falou aqui, é quase um Telê (Santana). Cobra, chama para conversar, defende, ensina como tem que fazer. É impressionante o que esses caras (do Flamengo) estão correndo. E você vê na cara deles que estão fazendo com gosto. Você nota.
Os técnicos portugueses estão à frente assim dos técnicos brasileiros?
Estão muito à frente. O que o brasileiro tem de bom é o carisma. Todo mundo acaba gostando do brasileiro. Felipão é amado aqui, aquele jeitão do Felipão. Ele é um português aqui (risos). Aquele jeitão grosso, parece que está brigando, mas é o jeito deles portugueses (falarem).
Recentemente, Sylvinho teve curta passagem como técnico do Lyon. O que falta?
Nós temos que entrar na cultura deles. O Jorge Jesus virou carioca, foi inteligente. Não adianta o Sylvinho pensar que é paulista e viver em Lyon como se vive em São Paulo. É um estilo de jogo diferente, ele não pode se distanciar dos outros, é inteligência.
Pensa em ser treinador?
Eu já entro dentro do campo para ajudar a dar treino. Sou quase treinador. O Diogo Jesus, que é o nosso técnico, é um molecão de 27 anos. Quer aprender, não tem vergonha de perguntar, pede ajuda, discute as propostas de treino e dou outras opções que aprimoram o treino dele. E olha que temos jogadores mais velhos do que ele. No início, ele ficava meio inseguro. Falei que eu iria amarrar um cordinha nele e mostrar como se fala com os caras, dá apoio, chama atenção, ensina a fazer direito. Fui dando dicas a ele. Trocamos ideia o tempo inteiro, mas ele que resolve.
Eu não acharia ruim, não (Jorge Jesus assumir a Seleção). O Tite deu o que tinha que dar. Chega uma hora em que técnico não tem como passar do limite. Não conheço o Jesus pessoalmente, mas o Márcio (Sampaio), um dos assistentes dele, é daqui de Almeirim. Pelo que ele falou aqui, é quase um Telê (Santana). Cobra, chama para conversar, defende, ensina como tem que fazer. É impressionante o que esses caras (do Flamengo) estão correndo. E você vê na cara deles que estão fazendo com gosto. Você nota.
Você está vivendo a pandemia no exterior. Tem acompanhado o combate à covid-19 no Brasil?
Você vai ficar com vergonha do que eu vou te falar porque a gente é brasileiro. Felizmente, eu estou com a minha família aqui, em Portugal. Nós vivemos nove anos nos Estados Unidos e você passa a ver um Brasil de verdade. Aqui fora, a gente vê o Brasil de verdade. É com muita tristeza que eu te falo: aprendi a vida inteira a fazer tudo errado. O Brasil instrui você a fazer tudo errado. É um jeito desse aqui, outro jeito desse lá. Quando houve esse problema da pandemia, que ficou seríssimo aqui na Itália, na Espanha, que são fronteiras com Portugal, o governo decretou estado de emergência aqui. Avisaram ao povo todo o que estava acontecendo, o que deveria ser feito, e o povo comprou a ideia.
Enquanto isso…
O que aconteceu no Brasil? O governo, por meio desse imbecil desse presidente aí, que se acha super-homem e virou o mito… Aliás, mais mito do que Rogério Ceni já, né? Tomou o título de mito do Rogério! ele começou uma guerra política. De um lado, o bolsonaristas; do outro, os lulistas. Ficou aquela briga lá e esqueceram do povo. Dizem que somos um país ignorante e que não tem educação. Não. É uma mentira. O problema é a vaidade pessoal, a política, a vagabundagem, gente que olha só para o umbigo.
Como está sendo a quarentena em Almeirim?
Almeirim não é uma cidade grande e já tem pouco movimento. Você não via passar nem carro de polícia na rua, cara. Quando passava, era com o microfone falando para ficar em casa. Eu não via ninguém na rua. Quando era para ir ao mercado, só entravam duas pessoas. Os demais respeitavam o distanciamento na fila e ficavam esperando sem pressionar ninguém.
Nós vivemos nove anos nos Estados Unidos. Aqui fora, a gente vê o Brasil de verdade. É com muita tristeza que eu te falo: aprendi a vida inteira a fazer tudo errado. O Brasil instrui você a fazer tudo errado. É um jeito desse aqui, outro jeito desse lá. Nos EUA, as minhas filhas tinham aula sobre política. Eles não falam para você votar no (Donald) Trump (republicano) ou na Hilary (Clinton, democrata), mas mostram o perfil de um e de outro. Um dia, estávamos jantando e elas começaram a falar de política. Nem imaginava que elas sabiam de política. Nas nossas escolas (no Brasil), aprendem a colar na prova, como roubar o lápis do outro, como dar volta na professora. Seria tão menos difícil se a gente fizesse a coisa certa.
Você morou nove anos nos EUA. O que assimilou da cultura de lá?
Morei nove anos nos Estados Unidos. Se você passa em um sinal vermelho, sai policial do chão. Nos Estados Unidos, as minhas filhas tinham aula sobre política. Eles não falam para você votar no (Donald) Trump (republicano) ou na Hilary (Clinton, democrata), mas mostram o perfil de um e de outro. Um dia, estávamos jantando e elas começaram a falar de política. Nem imaginava que elas sabiam de política. Nas nossas escolas (no Brasil), aprendem a colar na prova, como roubar o lápis do outro, como dar volta na professora. Seria tão menos difícil se a gente fizesse a coisa certa.
A pandemia está politizada no Brasil. Recentemente, o Raí deu opinião sobre o governo; o comentarista Caio Ribeiro criticou a postura do diretor do São Paulo; o Casagrande entrou no debate em defesa do Raí… Você conhece bem Raí e Caio do São Paulo. O que achou?
O Raí é um cara super inteligente. Morou muitos anos fora. A revolta dele, a ponto de pedir para o presidente renunciar, é porque, com certeza, ele pode ter tido problema com esse coronavírus na família. Quando a água bate na… é que você vê onde está.
Você jogou com o Raí, conhece bem o Raí. A sensibilidade dele é maior ao problema?
O Raí, por ter vivido muito tempo na França, vivido problemas de verdade no Brasil em instituições que que são beneficiadas por aquele projeto Gol de Letra dele, viu a realidade dessas pessoas como é. E aí, ver gente tratando esse vírus desse jeito. Imagina: até hoje, o mundo todo está buscando fazer a vacina e não consegue.
O Raí, por ter vivido muito tempo na França, vivido problemas de verdade no Brasil em instituições que são beneficiadas por aquele projeto Gol de Letra dele, viu a realidade dessas pessoas como é. Raí é um cara muito inteligente. Tem que pensar para dar bom dia para ele. Sou fã dos dois, mas a gente, que vem de dentro do mato, sabe o que é a pessoa ficar sem comer. Caio sempre teve a babá para dar a papinha na boca dele. Nós tivemos que aprender a comer com casca de banana.
Você é contra a volta do futebol no Brasil neste momento…
Ele falou com propriedade. Não tem que jogar, cara. Estão brincando com coisa séria. Não é gripezinha nem tem essa história de que brasileiro que bebe água do córrego tem que ser estudado. O Caio sempre foi tratado a pão de Ló. Vem de uma família boa. Gosto dele também. Não tem culpa se ele nasceu num berço diferente. Os eventos do Caio são para a elite; os que o Raí faz são para os meninos de rua, que não têm condição de comer. Eu estou do lado Raí. Se um jogador do São Paulo for contaminado e morrer, como é que faz?
Você trabalhou lado a lado com o Raí. Como ele é?
Raí é um cara muito inteligente. Tem que pensar para dar bom dia para ele. Sou fã dos dois, mas o Caio não pode voltar atrás. A gente, que vem de dentro do mato, sabe o que é a pessoa ficar sem comer. Caio sempre teve a babá para dar a papinha na boca dele. Nós tivemos que aprender a comer com casca de banana.
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