João Nery, o trans que inspirou Ivana, de ‘A força do querer’

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Desde os 4 anos, João W. Nery se sabia menino, embora todos ao redor, baseados na sua anatomia, o vissem como menina. O pequeno João, no entanto, ignorava as opiniões alheias e passou a maior parte da infância se comportando como o menino que era. Gostava de usar short sem camisa e brincar com os outros garotos na pracinha em frente à sua casa, no Rio de Janeiro dos anos 1950. Também apelava à fantasia e passava tardes inteiras interpretando Zeca, um viúvo que cuidava das filhas, ou seja, as bonecas das três irmãs.

Com o tempo, apareceram as censuras por ele, tendo corpo de menina, se identificar com o gênero masculino. Primeiro foram os meninos da pracinha, depois os colegas de escola, as pessoas na rua. As reprovações, porém, não convenceram João de que ele não era homem, apenas o fizeram se isolar, em uma “viagem solitária”, expressão que dá nome a um de seus livros, no qual conta a trajetória que o levou a se tornar o primeiro trans-homem (termo que considera mais adequado que homem transexual) a ser operado no Brasil.

Veja aqui um glossário de termos LGBT

Foi graças a uma cirurgia clandestina (porque ilegal à época), realizada em São Paulo em 1977, em plena ditadura militar, que João pôde, aos 27 anos, adequar sua aparência à sua identidade. Naquele momento, ao livrar-se dos seios e começar um tratamento hormonal, seu corpo finalmente deixou de ser um obstáculo e passou a ser fonte de prazer.

Também foi em outro ato de desobediência civil que João adquiriu documentos com seu nome social. Na cara e na coragem, foi a um cartório e disse precisar de novos documentos. Informou ser João e assumiu assim sua nova e verdadeira identidade. Porém, pagou um preço: todos seus outros documentos, incluindo a graduação e o mestrado em psicologia, tornaram-se inválidos. Deixou de dar aulas e precisou se virar em outras profissões, como pedreiro e motorista de táxi.

Seu livro Viagem solitária – Memórias de um transexual 30 anos depois (editora Leya), lançado em 2011, ajudou o Brasil a abrir os olhos para a realidade das pessoas trans e, mais especificamente, dos homens trans. E transformou João, hoje com 67 anos, em uma referência na luta pelos direitos humanos no país. A ponto de seu nome batizar o projeto de lei que institui o direito à identidade de gênero e facilita a obtenção de novos documentos por transpessoas, de autoria dos deputados Jean Wyllys e Érika Kokay.

O psicólogo e ativista conta que, com a repercussão de sua obra, acabou procurado, dois anos atrás, pela autora Glória Perez, que pensava em criar uma personagem trans para sua próxima novela. A partir do contato com João, Glória decidiu que a personagem não seria uma transmulher, como havia concebido inicialmente, mas um trans-homem, como João. O resultado da parceria foi Ivana, interpretada pela atriz Carol Duarte, em A força do querer.

Essa história com Glória Perez e toda a contribuição que João Nery deu nos últimos anos à luta pelos direitos de trans são narrados agora em seu terceiro livro: Vidas trans, a coragem de existir (Astral Cultural), que traz relatos do psicólogo e de outros três trans: Amara Moira, Márcia Rocha e T. Brant. Foi por conta do lançamento da nova obra, com prefácio da cartunista Laerte, que João conversou com o Blog Daquilo. Leia a entrevista a seguir.

O que o novo livro traz de diferente em relação aos anteriores?

Eu escrevi duas autobiografias. A primeira, Erro de pessoa – Joana ou João, é de 1984. Na segunda, eu já tinha 61 anos, e contei toda a minha história até a paternidade (João se tornou pai depois que sua mulher engravidou de um homem cisgênero e ele assumiu a criança), que eu chamei de Viagem solitária. Agora, depois da viagem solitária, vem a viagem solidária. Eu me tornei referência da luta pelos direitos trans no Brasil, ajudei a criar 36 grupos secretos para trans no país, dando a essas pessoas um atendimento adequado. E há dois anos a Glória Perez me procurou dizendo que precisava de ajuda para criar uma personagem transexual para a novela. Foi conversando comigo e lendo meu livro que ela desistiu de criar uma mulher trans e fazer um homem, e o resultado é o que estamos vendo com a Ivana. O novo livro fala desse período.

O senhor está assistindo à novela? Gosta do resultado?

Gosto. Porque para abordar um tema tão inovador para a televisão brasileira, é preciso ir apresentando o personagem aos poucos. Não dava para já chegar e mostrar um trans-homem. Assim, o público vai conhecendo a pessoa aos poucos, conhecendo sua história. E outro ponto é mostrar a psicóloga, mostrar como no Brasil os profissionais são despreparados para lidar com transexuais. De maneira geral, não há a cadeira de gênero e sexualidade nas universidades brasileiras, as pessoas não sabem o que é identidade de gênero, não diferenciam de identidade sexual. Você vê profissionais falando o travesti, sendo que nenhuma travesti tem identidade masculina.

O senhor presta consultoria para Glória Perez?

Sim, uma consultoria informal, gratuita, porque é de meu interesse que esse tema seja bem compreendido pelas pessoas. Converso com ela, envio textos, vídeos. É importante que a Ivana conquiste as pessoas. Essa novela pode ajudar a combater preconceitos, dar uma visibilidade que nunca houve à transexualidade.

A personagem Ivana, interpretada por Carol Duarte (Crédito: Rede Globo/Divulgação)

O senhor mencionou o despreparo dos profissionais no Brasil. O acesso aos serviços de saúde ainda é muito precário, não?

Muito. No país todo só há cinco ambulatórios que realizam o processo transexualizador pelo SUS. Um no Rio, um em São Paulo, um em Recife, um em Goiânia e um em Porto Alegre. Para o país inteiro. E a fila é imensa. Na Região Norte, não há nenhum. Além disso, há uma série de particularidades que são ignoradas e que são um verdadeiro desrespeito. Por exemplo, um trans-homem precisa de atendimento ginecológico. Se ele já tem documentos com seu nome social, o sistema do SUS acusa aquela consulta como uma fraude, porque um homem não pode se consultar com um ginecologista. O mesmo acontece nas consultas com obstetras. Outro problema é a patologização. A transexualidade ainda é tratada como patologia e, por conta disso, para ter o direito de fazer algo no nosso próprio corpo, nós precisamos ser avaliados por uma equipe médica multidisciplinar, que muitas vezes é machista, homofóbica, transfóbica. A despatologização é necessária e devemos alcançá-la um dia, assim como os homossexuais conseguiram.

Sobre essa questão, há pessoas, especialmente teóricos americanos, que consideram a despatologização perigosa, porque poderia tirar direitos dos trans aos tratamentos. O que o senhor acha desse argumento?

A realidade médica americana é bem diferente da brasileira. Lá há uma questão de a pessoa precisar estar doente para ter direito a um atendimento. No SUS não é assim, tanto que a mulher grávida não está doente e mesmo assim é atendida pelo SUS. A patologização nos tira autonomia, nos tira nossa cidadania. Mas só um país até hoje despatologizou completamente: a Argentina, com a Lei da Identidade de Gênero. Lá, hoje, trans conseguem um novo registro civil sem nenhum problema. No Brasil, há um projeto de lei semelhante, de Jean Wyllys e Érika Kokai, que leva o meu nome, o que me deixou muito honrado.

É possível contar com a aprovação desse projeto?

Com esse Congresso conservador que temos agora, não devemos ver a aprovação de uma lei assim. Estamos no tempo de esperar e resistir. Mas políticas públicas que combatam a homofobia, a transfobia são necessárias. O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo, três vezes mais que o segundo colocado, que é o México. Temos uma lei contra o racismo, temos a Lei Maria da Penha. Precisamos também de uma lei que proteja a população LGBT. Daí a importância das Paradas do orgulho LGBT, que começaram nos anos 1990 com meia dúzia de gatos pingados, mascarados, porque não podiam se mostrar. Hoje cresceram e são importantes não só como espaço político, mas como um espaço de liberdade, de as pessoas poderem exercer seu desejo, se vestirem como gostam livremente.

Hoje, o senhor ainda se sente ameaçado, tem medo de ser agredido na rua?

Bom, toda pessoa trans corre esse risco. Eu, porém, depois de 40 anos tomando hormônios, tenho um alto grau de passabilidade, que é como chamamos a capacidade de se passar por uma pessoa cisgênera. Isso me protege bastante. Eu também quase não saio de casa. Só saio para dar palestras, praticamente, viajo o Brasil inteiro.

Quanto à invisibilidade, os homens trans são menos visíveis? Há gente que nem mesmo sabe que existem, não?

Sim. Há algumas razões. Primeiro, o movimento das transmulheres e travestis está aí há mais tempo. No Brasil, a questão dos trans-homens praticamente só passou a existir com o lançamento do meu livro em 2011. As trans também têm concursos, se mostram mais. Os homens não têm tanto isso. Mas acho que agora, com a novela, isso deve mudar bastante.

Humberto Rezende

Jornalista desde 1997.

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