No Dia do Amigo, comemorado em 20 de julho, vale pensar nas fronteiras entre amizade e desejo — especialmente quando relações profundas, construídas na confiança e na convivência, evoluem para algo mais. Em muitos casos, o afeto e a intimidade que sustentam uma amizade tornam-se terreno fértil para o crescimento do amor romântico, transformando parceiros de risadas e confidências em companheiros de vida. Quando a amizade esbarra no desejo, o que está em jogo não é apenas uma mudança de status, mas a reinvenção de um vínculo que pode se tornar ainda mais forte — ou se perder no caminho.
A sexóloga e psicóloga Alessandra Araújo descreve como fascinante o poder de transformação das dinâmicas das relações humanas. “O desejo sexual em uma amizade pode surgir à medida que a intimidade e o conhecimento mútuo se aprofundam. A convivência revela camadas da personalidade que antes não eram percebidas, como o senso de humor, a inteligência, a forma como a pessoa lida com desafios ou até mesmo gestos de carinho e apoio em momentos difíceis”, afirma.
Essa admiração crescente, combinada com a segurança e o conforto da amizade, pode abrir espaço para uma nova percepção do outro, despertando uma atração que antes não existia ou estava adormecida. Segundo a especialista, essa transformação se intensifica quando há mudanças significativas na vida pessoal, como o fim de um relacionamento, uma fase de autoconhecimento ou momentos de vulnerabilidade, atuando como gatilhos.
Mas o sexo entre amigos é sempre arriscado? Pode fortalecer ou destruir o vínculo? A resposta é: depende. “Quando há uma comunicação aberta, honesta e um alinhamento claro de expectativas, a experiência sexual pode aprofundar a intimidade, fortalecer a confiança e trazer uma nova dimensão à amizade”, explica Alessandra.
Por outro lado, o risco aparece quando o desejo não é compartilhado de forma equilibrada. “O risco de danificar a amizade é significativo quando há desalinhamento de expectativas, medo de expressar sentimentos ou quando um dos lados desenvolve sentimentos românticos não correspondidos.”
Ela distingue também os dois caminhos possíveis dentro desse universo: a amizade colorida e o relacionamento amoroso em construção. “Em uma amizade colorida, a base da relação é a amizade, e o sexo é adicionado como um componente de prazer e intimidade física, sem a expectativa (inicialmente) de compromisso romântico. Já um relacionamento amoroso em construção implica um investimento emocional e um desejo de aprofundamento da conexão para além do físico”, observa.
De amigos a namorados
Foi gradual a percepção de M* de que havia algo a mais do que a amizade com a sua atual parceira — os olhares revelavam que o afeto estava rolando. No início M*, teve medo da possibilidade de arruinar uma amizade, mas, conforme foram se aproximando, percebeu que estava em um lugar seguro. “No final, nossa amizade só se fortaleceu”, comemora.
Por já conhecer a parceira, saber as manias e do que ela gostava, a construção de um romance foi facilitada. “Conhecer ela me fez amá-la cada vez mais”, afirma. Por mais que as dinâmicas tenham mudado com o passar do tempo, M* e a namorada ainda permanecem muito amigos — saindo tanto a sós quanto com o grupo.
Não é bagunça
Uma das questões mais comuns é a confusão entre carinho e paixão. A sexóloga destaca que confundir carinho e intimidade com paixão ou desejo é normal. Tanto o carinho quanto a paixão envolvem proximidade, cuidado, a vontade de estar junto e a partilha de momentos significativos. A intimidade emocional construída na amizade pode ser interpretada pelo cérebro como um indicativo de atração romântica ou sexual, de acordo com Alessandra.
Para quem se vê envolvido nessa linha tênue entre amizade e romance, a especialista destaca que o principal é a comunicação, para evitar que a relação se torne tóxica ou confusa. É fundamental que ambos os envolvidos estabeleçam limites claros e expectativas realistas desde o início, e que estejam dispostos a revisitá-los constantemente.
Ela também alerta para a importância de observar as próprias emoções. “É natural que sentimentos se desenvolvam, e ignorá-los só levará à confusão. Se um dos lados começa a sentir mais do que o combinado e o outro não corresponde, é preciso ter a maturidade para reavaliar a situação.”
E quando a paixão é unilateral? Como preservar a amizade? A especialista orienta o reconhecimento e a validação dos sentimentos de quem se apaixonou. Para quem não corresponde, é essencial ser honesto e empático. Para quem ama, pode ser necessário se afastar temporariamente, reorganizar os sentimentos e buscar apoio.
Ex-amigo
Em contraponto com a experiência positiva de M*, G* enfrentou o término de uma amizade por causa da paixão unilateral do amigo. Quando iniciou um novo relacionamento, percebeu comportamentos estranhos da pessoa que a acompanhava desde o ensino médio.
G* já havia ficado com o amigo algumas vezes, mas apenas por diversão, e considera que ele criou sentimentos não correspondidos. “Quando meu namorado vinha dormir na minha casa, ele (o amigo) achava até ruim que ‘perdia o lugar dele’ na cama comigo”, lembra. “Encrencava com meu namorado por qualquer motivo e ficava competindo por atenção.”
Além de confundir os patamares da relação, o amigo de G* nunca a admitiu que realmente nutria sentimentos por ela — o que G* considera uma falha. No fim, ela optou por acabar amizade pela falta de honestidade e desrespeito com os limites do casal.
Responsabilidade afetiva
Apesar dos riscos, Alessandra reforça que ultrapassar os limites entre amizade, afeto e desejo também pode abrir espaço para experiências afetivas e sexuais mais ricas. “O sexo com alguém que já se conhece e confia pode ser mais prazeroso, seguro e significativo. Quando há consenso, respeito e comunicação aberta, isso pode levar a uma profundidade de conexão e intimidade única — ou até mesmo à construção de um relacionamento amoroso duradouro.”
No fim das contas, tudo depende de honestidade, clareza e maturidade emocional. Se o desejo surgir entre amigos, não precisa ser tabu — mas deve sempre ser tratado com respeito, escuta e coragem para encarar as consequências de atravessar essa fronteira.
*Nomes abreviados para preservar a identidade dos personagens

