Que venha a desmoralização

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Por que o comunismo não fincou raízes no Brasil? Dizem as más línguas que o medo o afugentou. Ele temia a desmoralização. Em pouco tempo, viraria piada. Exemplos não faltam. Um deles: a colocação de pronomes átonos. Pra não correr risco, nada mais sábio que se manter fora.
 
Não faltam reclamações contra os indefesos o, a, te, se, lhe, nos. A pancadaria maior recai nas mil regras de colocação. Como memorizá-las? Existem as que tratam dos tempos simples. As que se dedicam aos compostos. E as que cuidam das locuções verbais. Debruçar-se sobre elas? Só quem não tem mais o que fazer.
 
Xô, portuga

 
Mais: as normas têm tudo a ver com a pronúncia de Portugal. Na terra de Camões e José Saramago, o pronome átono faz jus ao nome. É átono mesmo. Os portugas praticamente apagam a vogal. Me vira m’. Lhe, lh’. Convenhamos: com o reinado da consoante, fica difícil iniciar a frase com o pronome átono. Vale a lei do menor esforço. Dizer “dá-m’um cigarro” é moleza diante do “m’dá um cigarro”.
 
Vem, tupiniquim

 
Na língua desta Pindorama tropical, a história muda de enredo. O átono é quase tônico. A vogal do me, lhe, nos se ouve um tanto reduzida, mas até os surdos a escutam. Por isso as regras de lá não combinam com o falar de cá. Soam artificiais. Hoje os bons gramáticos concordam que a colocação dos pronomes no Brasil tomou os próprios rumos. Não é sem tempo. José de Alencar chamou a atenção para o fato. Oswald de Andrade, na primeira metade do século passado, escreveu o poema “Pronominais”. Nele, põe o dedo na ferida:
 
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da nação brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.

 
Jeitinho brasileiro

 
Há jeito de simplificar sem pisar a gramática? Em outras palavras: acertar com segurança, sem entupir a memória de pode-não-pode? Há. A alternativa é radical. Reduz as dezenas de normas a duas. Uma: não inicie frase com pronome átono. A outra: ponha o pronome sempre antes do verbo.
 
Eis exemplos: Dize-me com quem andas que te direi quem és. O visitante se tinha retirado antes da sobremesa. A morte não me poderia assustar depois de tudo o que passei. Continuamos a nos exercitar em línguas estrangeiras.
 
Abra um olho

 
Iniciar a frase com pronome átono tem dois significados. Um é claro: quer dizer começar o período: Ofereceu-me aumento de salário. Foi-se embora sem se despedir.
 
O outro é malandro. Não parece, mas é. Quando ocorre pausa que desampara o pronome, ele vai pra trás. Que pausa? Vírgula ou ponto-e-vírgula. Compare:
Aqui se fala português. Aqui, fala-se português.
O PT chantageou o presidente? Não; deu-lhe conselhos.
Para se retirar, pediu-me autorização.

 
Atenção, muita tenção. Não generalize. Às vezes, a vírgula separa termos intercalados. Mas, lá atrás, permanece a palavra em que o pronome se ampara: Lula disse que, apesar dos pesares, se entenderá com a oposição.
 
Abra o outro olho
 
A exceção confirma a regra. Ela se refere aos pronomes o e a. Quando antecedidos da preposição a, a pronúncia torce a língua. Não sai. Aí, só há uma saída. Mandar o pequenino pra trás do verbo. Compare:
 
Continuo a a querer (cruz-credo!). Melhor: Continuo a querê-la.