Paulo José Cunha escreve

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Brasília, 27.2.2012   Querida Dad,   Quanto tempo! Mas dizem que quem é vivo sempre aparece. E eu digo que morto também reaparece, vez ou outra, não apenas nos centros espíritas, mas aí mesmo pelas ruas, em plena luz do dia. Não acredita?   Não fosse assim, eu e Angélica não teríamos visto – com estes olhos que um dia a terra ou o calor do crematório hão de comer – um morto-vivo solto pelas ruas. Pois vimos. Vimos e anotamos para que não se esfumaçasse na memória.   E sabe quem foi o morto que vimos? Na verdade, devo abrir um parêntese: não era bem um morto, mas uma morta. Fecha parênteses. A finada era uma certa Gramática (lembra dela?), contra a qual parece que as superpotências se declaram em guerra atômica, tamanha a fúria de excluí-la da face da Terra.   Quando digo que a gramática está morta, você sabe muito bem que não exagero. É notória a notícia de sua morte, tantas pancadas, tantas facadas, tantos tiros, tantas chicotadas, tantos megatons  a pobrezinha recebeu e continua recebendo diariamente. Tinha de morrer, como de fato morreu.

E seus coveiros – espie só as placas das ruas – não se cansam de celebrar seu desaparecimento. É um tal de “Trás a pessoa amada na palma da mão” e “Afia-se tesouras” espalhados aí  que a gente não tem dúvidas: foi assassinato premeditado nos mínimos detalhes.   Mas a danadinha resiste. Não apenas nos livros e nas apostilas que os concurseiros devoram dia e noite, no afã de incorporá-la a qualquer custo (assim como os médiuns incorporam seres do além como o dr. Fritz ou a legião de pretos velhos que ornamentam os rituais da umbanda). A Gramática, como eu disse, resiste, mesmo morta e enterrada.

Ainda agorinha demos com ela, toda ancha, num belíssimo letreiro instalado ali na comercial da 410 Norte. Tal aparição não merece passar em branco, por isso resolvi escrever para lhe comunicar a feliz notícia.  Diz o letreiro, afixado no frontispício de uma sobreloja: “Fazem-se costuras e consertos de roupas. Forram-se botões”.   Foi Angélica que percebeu e me chamou a atenção: “É tão difícil encontrar uma placa sem erros que até chama a atenção”. Li e concordei com ela. Vamos ler de novo porque, como se sabe, é na releitura que se fixam forma e conteúdo das boas obras: “Fazem-se costuras e consertos de roupas. Forram-se botões”.

Olha só que maravilha! Que precisão! E, ao que tudo indica, a preciosidade foi redigida por uma simples costureira, profissão das mais importantes e úteis, embora tão destituída de status nestes tempos de magazines gigantes onde se vendem confecções produzidas por poderosas máquinas, em série, para todos os gostos e tamanhos.   Observe as concordâncias. Nossa costureira não escreveu “Faz-se costuras”, mas “Fazem-se costuras”, estabelecendo preciosa concordância do verbo fazer com o plural “costuras”, além, é claro, com o complemento “e consertos de roupas”. Aqui, chama a atenção o cuidado de pôr no plural a palavra “consertos”, não “conserto”, como se vê tanto por aí. Mais do que isso: a palavra “consertos” – lembrou-me Angélica – está escrita bem certinho, com “s”, e não com “c”!     Por último, a frase final: “Forram-se botões” e não “Forra-se botões”, como é encontradiço por aí. Bingo!   Diante de tão auspicioso fato, resolvi lhe escrever para dar notícias. Notícias boas, como vê, pois não é todo dia que a gente encontra gente morta vivinha por aí e mostrando que é possível, sim, imitar o Todo-Poderoso  e escrever certo por linhas (e agulhas e tesouras) tortas. E as más línguas ainda dizem que jornalista não gosta de notícia boa…    Ah, Angélica quer conhecer você. Sabedora de sua fama, me disse que vai ficar bem caladinha pra não cometer nenhum deslize e assim jogar mais terra na cova da Gramática.     Um beijo deste seu admirador   Paulo José Cunha