Os bois e os nomes

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Al Martin   Em seu editorial de 28 de setembro, o Correio Braziliense se embrenha por um assunto espinhoso. Enfrenta, corajosamente, uma conjectura que atormenta filósofos desde a Grécia antiga. A coisa e seu símbolo são convergentes ou inapelavelmente antinômicos? Em palavras menos empoladas: mudando o símbolo muda-se a coisa?   Os franceses, com sua longa experiência em matéria de conflitos, afrontamentos, revoluções e guerras, ensinam a «appeler un chat un chat» ― se for um gato, há que dizer que é um gato. Esse dito popular exorta o bom povo a não ter medo de dizer as coisas como elas são. Dar nome aos bois, diríamos nós outros. Diríamos? Dizíamos, caro leitor, dizíamos.   Até alguns anos atrás, os contorcionismos verbais se restringiam a suavizar tabus geralmente de ordem sexual. Todas as palavras que pudessem, de perto ou de longe, remeter ao sexo eram evitadas. Até fenômenos fisiológicamente naturais como a trivial menstruação tinham seus nomes eludidos. Dizia-se que a moça estava «naqueles dias».   Costumes mudam com o passar do tempo. Não há que ser empacado nem caprichoso, que o mundo é assim mesmo. A sociedade evolui e, com ela, as modas, as palavras, as expressões. De uns tempos para cá, essa guinada tem-se acelerado em nosso País. É fenômeno importado, mas aqui pegou forte, alastrou-se como fogo em palha seca.   Uma lista de nomes e expressões a banir foi instituída. E esse rol tende a se avolumar a cada dia. Não se fala mais assim, não se diz mais aquilo, nem pensar em pronunciar aquilo lá. Fica a desagradável impressão de que mentores mal-intencionados se concertaram para agir conscientemente a fim de acirrar ânimos, aprofundar fossos entre extratos sociais, separar o povo em campos distintos e antagônicos.   Palavras estranhas ― e nem sempre bem escolhidas ― nos vêm sendo impostas. Mulato, por exemplo, palavra a execrar hoje em dia, deve ser substituída por afrodescendente. Ora, há que ter em mente que todos os mulatos são também eurodescendentes, se não, não seriam mulatos. Por que, raios, o afro- teria precedência sobre o euro-? Devemos enxergar aí uma nova discriminação?   O Brasil já foi um país muito mais livre. O que digo pode soar estapafúrdio para os mais jovens, mas é o que ressinto. Éramos pobres, sim, mas podíamos sair à rua sem medo de ser assaltados, não precisávamos viver enjaulados como bichos no zoológico, a porta de casa dispensava tranca. E era natural dar nomes aos bois.   Hoje somos mais ricos (ou menos pobres, conforme o caso), mas vivemos na apreensão permanente do assalto, da violência, da bala perdida, do sequestro relâmpago. Somos obrigados a nos cercar de jaulas, câmeras de controle, porteiros, vigias. E, para coroar tudo isso, como morango em cima de bolo de aniversário, já não podemos falar como antes. Temos de filtrar nossas palavras, pesar nossas expressões, policiar nosso discurso.   Será que, de uns dez anos para cá, teremos sido capazes de resolver a conjectura secular dos filósofos? Será que, mudando o nome da coisa, mudamos também a essência dela? Será que o mulato transfigurado em euro-afrodescendente será mais respeitado, mais valorizado, mais favorecido, mais feliz?   Se assim for, chegou a hora de enfiar o grande Ataulfo Alves no mesmo balaio em que já estão Monteiro Lobato e o Saci-Pererê. Seu samba Mulata assanhada, de 1956, tem de ser banido do cancioneiro nacional.   E é bom que preparem um balaio de bom tamanho. Muita gente fina vai ter de se acomodar lá dentro. Gente do quilate de Ary Barroso, Chico Buarque, Noel Rosa. Pelas regras de hoje, estão todos em pecado mortal.