Olho no contágio, gente

Publicado em Geral

Moisés Morais, de BH, é voraz leitor de jornais. Na viagem por letras, palavras, períodos e parágrafos, presta atenção ao fato e ao texto. Nada escapa ao olhar atento e à crítica perspicaz. É dele o comentário: “Constato que, gradativamente, há aumento considerável no número de erros grosseiros de português em reportagens, crônicas e até em editoriais. Os deslizes são tantos que não me animo a apontá-los a cada dia. Hoje, porém, há um imperdoável na capa. Ei-lo: `Ferraz admitiu que devem haver mais confrontos com bandidos´. Baita trombada, não?”

O verbo singular

Lá  longe, no curso primário, nossos professores ensinavam: “O verbo haver, no sentido de existir e ocorrer, é impessoal”. O que isso quer dizer? A maioria dos verbos — comuns, rotineiros, sem charme – é pessoal. Conjuga-se em todas as pessoas (eu, tu, ele, nós, vós, eles). Veja, por exemplo, o laborioso trabalhar: eu trabalho, tu trabalhas, ele trabalha, nós trabalhamos, vós trabalhais, eles trabalham.

O haver detesta fazer parte de rebanho. Quer ser especial. E consegue. No sentido de ocorrer e existir, é impessoal. Sem sujeito, só se conjuga 3a pessoa do singular. Por isso recebe o apelido de verbo singular. Exemplos não faltam: Há (existem) 10 pessoas na sala. No leilão, havia (existiam) antiguidades pra dar e vender. Acompanhamos as tentativas que houve (existiram) até aqui. Houve (ocorreram) distúrbios nas manifestações. A demanda é por habitações que não há (existem) no mercado.

A razão

Vamos combinar? Não é nada do outro mundo. Por que, então, se faz tanta confusão com a criatura? É possível que muitos não tenham prestado atenção às palavras do professor. Ou não tenham entendido a lição. Ou, ainda, tenham deixado a explicação entrar por um ouvido e sair por outro.

Resultado: até hoje, barbudos e carecas pensam que o sofisticado haver é igual aos demais membros da tribo. Esquecem que ele não tem sujeito. Com medo de errar, imaginam que o objeto direto é o sujeito. Bobeiam. Quando se diz “houve poucos distúrbios”, distúrbios não é sujeito como pensam os desavisados. É objeto direto. Não tem nada a ver com a concordância.

Contágio

A impessoalidade é contagiosa. Os auxiliares do haver também se tornam impessoais. Foi aí que o jornal tropeçou: Haverá mais confrontos com bandidos. Deve haver mais confrontos com bandidos. Vai haver mais confrontos com bandidos. Pode haver mais confrontos com bandidos. Talvez vá haver mais confrontos com bandidos.

Mais exemplos

Olho no contágio: Houve distúrbios nas manifestações. Talvez tenha havido distúrbios nas manifestações. Vai haver distúrbios nas manifestações contra a Copa? Pode haver distúrbios nas manifestações. Torço para que não haja distúrbios durante as manifestações. E você?

Superdica

Dizem que, se conselho fosse tão bom, a gente não dava. Vendia. Vá lá. Mas eis um de graça: sempre que pintar a tentação de flexionar o haver, pare e pense. No sentido de ocorrer e de existir, ele é invariável, irremediavelmente fiel à 3a pessoa. Por via das dúvidas, risque o houveram do seu vocabulário. Você nunca o usará.