Há palavras adaptáveis que só. Têm a cintura mais flexível que a de político mineiro. É o caso do mesmo. Ora ele se flexiona no feminino, masculino, singular e plural. Ora se mantém invariável. A maleabilidade é tal que incentiva abusos. Criaturas sem limites acham que podem fazer gato e sapato do dissílabo. Enganam-se. Vingativo, ele os desmoraliza. Pra escapar do vexame, o bom senso aconselha pôr as barbas de molho. A receita é uma só — conhecer as manhas do ser tão elástico quanto chiclete.
Porteira aberta
1. À s vezes, mesmo funciona como pronome demonstrativo. Aí, concorda em gênero e número com o substantivo a que se refere: o mesmo jogo, a mesma camisa, os mesmos jogadores, as mesmas partidas.
2. Outras vezes, modifica substantivos e os pronomes pessoais. Flexiona-se, então, de acordo com o gênero e o número do termo a que se relaciona. Para melhor compreensão, pode ser substituído por próprio e própria: a garota mesma (a própria garota), o ator mesmo (o próprio ator), as garotas mesmas (as próprias garotas), os atores mesmos (os próprios atores), eu mesma (eu própria), eu mesmo (eu próprio), ele mesmo, ela mesma, nós mesmos, nós mesmas, eles mesmos, elas mesmas.
3. Há ocasiões em que o polivalente faz papel de advérbio. Significa realmente, de fato. Aí, fica invariável: Ele não viajou mesmo. Fizemos o trabalho ontem mesmo. Ela quer mesmo mudar-se de casa.
4. A versatilidade do mesmo não fica por aí. Ele pode funcionar como pronome neutro. Tem o sentido de a mesma coisa: Ir ou ficar não faz diferença. Dá no mesmo (na mesma coisa). O mesmo (a mesma coisa) eu ouvi de pessoas diferentes.
Entrada proibida
Apesar das mil e uma utilidades, há pessoas insaciáveis. Querem mais. Exigem que o coitado faça as vezes de pronome pessoal ou de pronome relativo. Ele não gosta. Reclama. E dá o troco. Desmoraliza quem o obriga a ser o que não é. Deixa a frase capenga, pobre e viciada. Quer exemplos?
Vou à casa de Maria. Lá, combinarei com a mesma a festa do Dia das Crianças.
É a receita do cruz-credo, não? Mesmo não tem procuração pra substituir o sujeito, o objeto, o complemento. A gente não precisa cair na esparrela. Há jeitos de escapar da muleta de preguiçoso.
Quer ver? Vou à casa de Maria, com quem combinarei a festa do Dia das Crianças. . Vou à casa de Maria para combinar com ela a festa do Dia das Crianças. Vou à casa de Maria. Combinarei com ela a festa do Dia das Crianças.
Outro exemplo
Realizou-se domingo a comemoração do Dia da Pátria. Compareceram à mesma milhares de pessoas.
Cruzes! Pra lá, comodismo: Realizou-se domingo a comemoração do Dia da Pátria à qual compareceram milhares de pessoas. Realizou-se domingo a comemoração do Dia da Pátria. Milhares de pessoas compareceram à Esplanada dos Ministérios. Realizou-se domingo a comemoração do Dia da Pátria. Milhares de pessoas deram brilho à festa.
Aviso nos elevadores
Há pessoas que abandonaram os elevadores. Tornaram-se freqüentadores de escadas por causa do aviso afixado em todos os andares. O texto, obrigatório por lei, está eivado de erros. Um deles é o emprego do mesmo. Eis a pérola legislativa:
“Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar.”
Pra evitar acidentes e desgastes físicos, é necessário respeito à língua. O mesmo deve cair fora. Mas não irá sozinho. Outras mudanças se impõem. Dado a César o que é de César, a recomendação fica assim: Antes de entrar, verifique se o elevador está neste andar. Que tal?
Resumo da opereta
Mesmo fica tiririca diante de abusos. Respeite-o. Não o ponha no lugar dos pronomes pessoal (ele, ela) e relativo (que, quem). Nem o ponha no papel de substituto do sujeito, do objeto e complementos. Na hora da tentação, pare, pense e diga sem apego:
— X ô!