Sísifo era pra lá de esperto. Só queria se sair bem. Paquerava a namorada dos amigos. Contava os segredos dos companheiros. Gozava do pai. Mentia pra mãe. Trapaceava a mulher. Nem a morte escapou. Ao descobrir que ia partir, achou má idéia. Como se safar? Só havia uma saída: passar a morte pra trás. Quando ela bateu à porta, o sabido a recebeu muito bem. Conversou, riu, contou piadas. A visitante se distraiu. Não deu outra. Ele a prendeu com cadeado e tudo. Ela ficou presa um tempão.
Num descuido do seqüestrador, a refém escapou. Partiu pro trabalho. Precisava levar muita gente pra recuperar o tempo perdido. Sísifo foi o primeiro. Quando chegou ao outro mundo, disse aos deuses que tinha esquecido uma coisa muito importante na Terra. Pediu pra voltar um instantinho só. Eles o deixaram. Ao chegar aqui, o astucioso se esqueceu da promessa. Não voltou. Muitos anos depois, tornou a morrer. Aí, recebeu um castigo — levar um baita bloco de pedra até o alto da montanha. Mas a pedra não pára. Quando ele chega lá, a pedra rola. Ele volta a levá-la pro alto. Ela torna a rolar. O coitado faz isso até hoje. É o martírio de Sísifo.
Me engana, que eu gosto
Dois de novembro é data pra lá de especial. Nesse dia, lembramos os que foram na frente. Não lhes damos o nome de mortos. Falamos em finados, filhote de fim. A razão? Morremos de medo da palavra que lembra dor, perda, sofrimento. Lá no fundo, acreditamos que proferir o vocábulo atrai o mal. Apelamos, então para eufemismos. Adoçamos o termo.
Pra não pronunciar as cinco letras, recorremos a sinônimos brandos. Manuel Bandeira chamou-a de “a indesejada das gentes”. Outros dizem passamento, falecimento, viagem, ida para a companhia do Senhor, passagem desta para melhor, espichar a canela, vestir paletó de madeira, bater as botas. E por aí vai. Vale tudo pra bancar o Sísifo.
Por falar em Bandeira…
O eufemismo “indesejada das gentes” aparece no poema “Consoada”. Conhece? Ei-lo:
Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Variedade
Alguns dizem funeral. Outros, sepultamento. Muitos preferem exéquias. Os sofisticados precisam respeitar a excentricidade da palavra. Exéquias joga no time de pêsames. Ambas só se usam no plural. Artigos, adjetivos, pronomes e verbos a elas relacionados vão atrás: Apresentei meus pêsames à família. As exéquias se finalizarão às 17h.
Lição de estilo
“Entre duas palavras”, ensina Paul Valéry, “escolha sempre a mais simples; entre duas palavras simples, escolha a mais curta.” A razão: vocábulos simples e curtos ajudam a luta pela naturalidade da fala e da escrita. Falecer ou morrer? Morrer. Óbito ou morte? Morte. Féretro ou caixão? Caixão.
Morto ou morrido?
Morrer e matar têm dois particípios. Um regular — comum, igual ao dos verbos da mesma conjugação: morrido e matado. Outro irregular — diferente, magrinho, reduzido: morto. Quando usar um e outro?
Use o particípio regular com os verbos ter e haver e o irregular com ser e estar: A polícia tinha (havia) matado o ladrão antes de prendê-lo. O ladrão foi morto antes de ser preso. Quando chegou ao hospital, Eloá ainda não tinha (havia) morrido. Dias depois, estava morta. Mas os órgãos sobrevivem. Coração, pulmões, pâncreas, fígado, córneas salvaram vidas e devolveram a alegria a pessoas que aguardavam um milagre.