Não combina

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DAD SQUARISI // dadsquarisi.df@dabr.com.br

Há fatos que destoam de Brasília. Não combinam, como diz o povo em bom português. Moderna, aberta, exibida nas retas, curvas e arcos, a capital nasceu para escancarar portas da vanguarda. Os ventos que daqui soprassem contagiariam as demais unidades da Federação. Legislativo, Executivo e Judiciário dariam exemplos aos quais ninguém resistiria. Mas não foi bem assim. A realidade cassou o sonho.

Não combina com Brasília povoar a Câmara Legislativa de deputados em dívida com o Código Penal. Nove dos 24 distritais estão na fila da Justiça. Os crimes vão de corrupção, passam por lavagem de dinheiro, chegam a formação de quadrilha. É a gaiola de ouro candanga.

Não combina com Brasília o caos no trânsito. Congestionamentos, onda vermelha no Eixo Monumental, falta de civilidade, ônibus velhos e apinhados desmoralizam a urbe de Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Aos 53 anos, ficamos cada vez mais parecidos com metrópoles que nasceram e cresceram ao acaso.

Não combina com Brasília a reserva de vagão exclusivo para mulheres. Confiná-las é dar-lhes atestado de incapaz. (Como criança presa no cercadinho, ela precisa de proteção.) É esquecer as conquistas que derrubaram as barreiras do atraso e lhes aplainaram o caminho da cidadania. Como explicar tal retrocesso? “Pra evitar bolinação”, diz o governo.

O argumento soa falso. Câmeras vigiam o cidadão em estações e carros do metrô. O país dispõe da Lei Maria da Penha. Em resposta ao assédio, o machão vai para trás das grades acusado de estupro. O crime é hediondo. Seria o caso de promover campanha de esclarecimento. Informadas, as mulheres reagiriam. Informados, os homens contariam até 10 antes da aventura.

Melhor: acabar com o cardume de gente em que o metrô se transformou. Mais carros e intervalos menores evitariam a superlotação. E manteriam Brasília nos trilhos da modernidade como Berlim, Viena, Praga, Moscou, Paris, Londres, Roma, Madri, Barcelona e Nova York. Não só. A opção pelo atraso põe em risco o livre arbítrio. Mulheres que preferirem viajar em vagões mistos “estarão querendo”. Ou não?

(artigo publicado no Correio Braziliense de hoje)