Monteiro Lobato no STF

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MÔNICA SIFUENTES

Desembargadora do TRF 1ª Região

Passei boa parte da minha infância e adolescência lendo Monteiro Lobato. Primeiro, As reinações de narizinho, Viagem ao céu, O pica-pau amarelo, O Saci, O marquês de rabicó. Mais tarde, encantei-me com os contos de Urupês e Cidades mortas. Conheci um pouco da mitologia grega com o Minotauro e com Os doze trabalhos de Hércules; aprendi história no inesquecível História do mundo para crianças.

Do autor, além da grandiosa obra, ressalta-se o homem idealista e sonhador, à frente do seu tempo. Nacionalista, afrontou o Estado Novo ao lutar pelo petróleo brasileiro, causa que lhe custou a perda dos seus bens e a prisão. Intelectual, não só defendeu a produção e impressão de livros no Brasil, como trouxe para a literatura infantil toda a riqueza do nosso folclore, com as suas cucas, curupiras, mulas sem cabeça e o Saci-Pererê.

As crianças de hoje sonham em viajar para a Disneyworld ou para o mundo encantado e estrangeiro de Nárnia e Harry Potter. As crianças de ontem sonhavam em ir ao mágico Sítio do Picapau amarelo para ouvir as estórias de Dona Benta, brincar com a boneca Emília e saborear os quitutes da tia Anastásia.

Por isso causou-me certo desconforto a notícia sobre a interposição de mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal, no qual o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) pede a anulação de um parecer do Conselho Nacional de Educação que liberou a adoção, nas escolas públicas, do livro Caçadas de Pedrinho. Para o Iara, a estória contém trechos racistas envolvendo a personagem Tia Anastácia, cuja cor negra é mencionada de forma pejorativa pelo autor. Num trecho, a personagem Emília refere-se ao iminente ataque de onças e animais ferozes ao sítio: Não vai escapar ninguém — nem Tia Nastácia, que tem carne preta. Em outro trecho, Anastácia sobe num mastro para fugir das onças. A cena é descrita assim por Monteiro Lobato: Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão.

De fato, a leitura do trecho, escrito há quase 80 anos (o livro foi publicado em 1933) é mesmo chocante. Como também o é ler em Memórias Póstumas de Brás Cubas, clássico da literatura brasileira pela pena de ninguém menos que Machado de Assis, que o personagem, quando criança, quebrara a cabeça de uma escrava, por que lhe negara uma colher do doce de coco que estava fazendo. Ou então quando ele se refere a Prudência, moleque de casa: era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia — algumas vezes gemendo, mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um “ai, nhonhô!” — ao que eu retorquia: “Cala a boca, besta!”

Procurei, no fundo da minha memória, que impressão me ficara, da leitura de Lobato e Machado, de Tia Anastácia ou de Brás Cubas. Da primeira, restou-me a imagem de uma senhora de cor negra, bonachona, que fazia doces e bolos deliciosos, amorosa com as crianças e adorada por elas. De Brás Cubas ficou o retrato de um jovem fútil, cheio de caprichos, com ares da Europa, cujo comportamento é a face caricata da sociedade brasileira burguesa do século 19.

As expressões inadequadas contidas em ambas as obras, como em várias outras, não sei se por conta de uma peculiar sabedoria das crianças, que absorve apenas o melhor das estórias, não fazem parte das minhas lembranças. Certamente porque tenha entendido, no decorrer do processo de aprendizagem, a necessidade de se exercer juízo crítico sobre todas as nossas leituras. Não fosse assim, como superar a crueldade absurda contida nas estórias infantis que se tornaram clássicos da literatura universal, como Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve e o Pequeno Polegar?

Oxalá a audiência pública, tão sabiamente convocada pelo ministro Luiz Fux para que as partes envolvidas nessa celeuma cheguem a um consenso, possa dar frutos outros, que não a proibição de leitura das deleitosas aventuras de Pedrinho, Narizinho e Emília no Sítio do Picapau Amarelo. Todo artista, assim como todo escritor, é fruto do seu tempo e os seus escritos não podem ser lidos fora do contexto. Censurar Monteiro Lobato, cuja obra literária infantil ainda não foi superada por nenhum outro escritor de língua portuguesa, implica o dever de também passar um pente fino em toda a literatura brasileira do século 19 e até pelo menos a metade do século 20. Em outras palavras, uma tremenda burrice.