Literatura e experiência de Deus

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FREI BETTO

Escritor, autor, em  parceria com Marcelo Barros, de O amor fecunda o universo – ecologia e  espiritualidade (Agir), entre outros livros.

Pela literatura, o verbo se faz carne. Embora  a música seja, na minha opinião, a mais sublime das artes, a literatura é a  mais sagrada. Deus a escolheu para, através dela, se revelar a nós. Escolheu  uma escrita, a semítica, e um gênero próximo da ficção, pois em toda a Bíblia não há uma única aula de teologia, um ensaio doutrinário, um texto conceitual.  É toda ela uma narrativa pictórica – vê-se o que se lê.  

Os livros bíblicos reúnem uma sucessão de fatos históricos e alegóricos (parábolas, metáforas, aforismos), entremeados de genealogias, axiomas, provérbios, poemas (Cântico dos Cânticos e  Salmos) e detalhes técnicos e ornamentais (a construção do Templo cf. 2 Crônicas).

Como frisa Herbert Schneidau, a Bíblia pode ser  considerada “prosa de ficção historicizada”. Historicizada porque se distancia  do universo das lendas e dos mitos, embora haja matéria-prima lendária  subjacente ao Gênesis no relato sobre Davi, na saga de Jó e em parte  dos Livros dos reis.

Os autores bíblicos se afastaram, deliberadamente, do  gênero épico (Homero e Virgílio), o que se explica pela rejeição do  politeísmo. O que impregna a escrita bíblica é o senso de historicidade. Ela  rompe com a circularidade do mundo mitológico e apresenta-nos um Deus que tem  história: Javé, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Nela a historicidade se faz  presente na descrição dos cinco primeiros dias da criação, antes do surgimento  daquele que viria a ser considerado o protagonista do processo histórico: o  ser humano. Há uma evolução, simbolizada na sucessão dos seis  dias.

O que faz de nós imagem e semelhança de  Deus é a capacidade de amar e a linguagem. Animais também amam, tanto que  certos pássaros, como os pardais, se mantêm fiéis após se acasalarem. Mas  somente o ser humano possui um nível de consciência que lhe permite ordenar e  expressar sentimentos, emoções, intuições e afetos. Isso nos faz semelhança  divina. Deus é amor e seu afeto por nós se manifesta na linguagem contida na  narrativa bíblica e na epifania do verbo que, entre nós, se fez carne.  

A escrita é uma forma de tentar organizar o caos  interior. Por isso, todo artista é clone de Deus. A escrita é terapêutica, libertadora. Hélio Pellegrino, psicanalista, atribuía a minha sanidade mental  no decorrer de meus anos de prisão ao fato de eu ter literalizado a vida de  cadeia. O meu mundo é recriado quando lanço mão de vocábulos e regras  sintáticas para dar forma e expressão ao que penso e sinto. Assim,  transubstancio a realidade, projeto-me em algo que, fora de mim, não sou eu e,  no entanto, traduz o meu perfil interior de um modo que eu jamais conseguiria  pela simples fala.

A escrita constitui uma forma de oração, como bem  sabia o salmista. A experiência de Deus antecede e ultrapassa a escrita. No entanto, o pouco que dela se sabe é por meio da escrita; raras vezes por  experiência pessoal. Grandes místicos, como Buda, Jesus e Maomé, nada  escreveram. O que sabemos deles e de seus ensinamentos é graças a quem teve o trabalho de redigir.

Ainda que o próprio místico possa fazê-lo, como são  exemplos Plotino, Mestre Eckhart e Charles de Foucauld, há um momento em que a  experiência de Deus ultrapassa os limites da palavra. É inefável. Como diz  Adélia Prado, “Se um dia puder, nem escrevo um livro” (Círculo). “Não  me importa a palavra, esta corriqueira, / Quero é o esplêndido caos de onde  emerge a sintaxe, / A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda /  foi inventada para ser calada. / Em momentos de graça, infrequentíssimos, / se  poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. / Puro susto e terror (Antes do  nome).

João da Cruz, patrono dos poetas  espanhóis, deixou três de seus quatro livros inacabados. Tomás de Aquino  considerou, após seu êxtase em Nápoles, que toda a sua obra não passava de  “palha”. E não mais escreveu.

Há no enfoque adeliano uma empatia com o poema  Ash-Wednesday (“Quarta-feira de cinzas”), de T.S. Eliot, escrito  em 1930, três anos após a conversão do poeta ao cristianismo. Na quinta parte,  Eliot canta que “a palavra perdida se perdeu”, “a usada se gastou”, mas  perdura no “Verbo sem palavra, o Verbo. Nas entranhas do  mundo”.

Toda poesia de qualidade é polissêmica. É  verso que faz emergir nosso reverso. É canto que encanta, desdobra em múltiplo o nosso ser e nos induz a encontrar aquela pessoa que realmente somos e, no  entanto, em nós reside como um estranho que provoca temor e  fascínio.

É à poesia que o apóstolo Paulo recorre  quando, no discurso no Areópago (Atos dos Apóstolos 17, 28), expressa a  nossa ontológica e visceral união com Deus: “Nele vivemos, nos movemos e  existimos, como alguns dos vossos, aliás, já disseram: ´Porque somos também de  sua raça´.”

Trata-se de uma citação livre da obra  Fenômenos, de Arato, poeta que viveu na Cilícia no século 3 a.C. O  texto originário é: “Comecemos com Zeus, de que nós mortais nunca deixamos  de lembrar. Porque toda rua, todo mercado está cheio de Zeus. Mesmo o mar e o  porto estão cheios da divindade. Em todo lugar todo mundo é devedor a Zeus.  Porque somos, na verdade, seus filhos… “ (Phaenomena  1-5).

(artigo publicado hoje no Correio Braziliense)