“Ah, se eu pudesse! Pisaria a língua todos os dias. Em troca, receberia chuvas de aplausos”, suspiram, invejosos, milhões de brasileiros. E explicam: “Drummond, que é Drummond, abusou das liberdades poéticas. Quando a diva do teatro nos abandonou em 1969, o mestre mineiro escreveu: `Cacilda Becker morreram´. O verso comoveu Europa, França e Bahia. Mas dá uma baita trombada na concordância. O poeta errou?”
Claro que não. Ele tem licença poética. Privilegiado, pode mandar as regras pras cucuias. A norma, pra ele, é libertação. Nunca camisa-de-força. Entre as tantas possibilidades que a língua oferece nenhuma serve? Pau nelas. Criam-se saídas. Com o simples plural do verbo, Drummond deu o recado. Cacilda é muitas. Não morreu uma atriz. Morreram as multidões de atrizes que viviam dentro dela.
Alto lá, cara pálida
Qual o limite da licença-poética? O nome da figura diz tudo. Trata-se de concessão ao artista. É privilégio para quem galgou os degraus do conhecimento. Todinhos. E, lá de cima, pode mover-se em qualquer direção. O assunto freqüenta os cursos de comunicação. Alunos de publicidade esperneiam. Negam-se a se submeter ao rigor da norma. “Com ela a gente não chega a lugar nenhum”, dizem. Será? Propaganda do Guaraná Antarctica prova que não. Ei-la:
Procuram-se garrafas antigas de Guaraná Antarctica. Uma comunidade na internet encontrou pistas de que diversas garrafas de Guaraná Antarctica estão escondidas há muito tempo pelo Brasil. Elas contêm pedaços de um mapa que é chave de um grande segredo. Ajude-nos. Oferecemos recompensa. Mais detalhes, procure-nos no site.
Meus respeitos, língua
O texto está nas páginas de jornais e revistas. Vende o produto e homenageia a língua. Tropeçou em cinco dificuldades. Ultrapassou-as. Quer ver?
Procuram-se garrafas antigas
Que colírio! O autor sabe lidar com a passiva sintética. Garrafas antigas é o sujeito. O verbo, velho vassalo, concorda com o suserano. Muitos duvidam. Para sair da confusão, basta recorrer à passiva analítica. Aí, fica claro o mandachuva da oração: Procuram-se garrafas antigas (garrafas antigas são procuradas). Vendem-se ovos (ovos são vendidos). Alugam-se casas na praia (casas na praia são alugadas). Consertam-se carros (carros são consertados).
Internet
Quando nasceu, internet era sigla (escrevia-se com a inicial maiúscula). Era a forma preguiçosa de international net. Em bom português: rede internacional de computadores. Com o tempo, entrou no time das mídias. É como jornal, revista, rádio ou tevê. Perdeu o privilégio da inicial maiúscula. Tornou-se a vira-lata internet.
Há muito tempo
Viva! É contagem de tempo passado? O verbo haver pede passagem: Cheguei há pouco. O comércio abriu há duas horas. Os eleitos de outubro assumiram o poder há 100 dias.
Trata-se de futuro? Só a preposição a tem vez: Daqui a pouco chego aí. A dois meses das festas juninas, o Nordeste ensaia as quadrilhas e os casamentos na roça. A que horas você pode sair? Só daqui a meia hora.
Elas contêm
Vítimas da má escola? Há muitas. Uma delas: os derivados do verbo ter. Os infelizes sofrem maus-tratos na grafia e na conjugação. A 3ª pessoa do singular e plural do presente do indicativo é freguesa dos descuidados. Vale a pena ver a forma nota mil: ele contém, eles contêm; ele retém, eles retêm; ele detém, eles detêm.
O futuro do subjuntivo chora, chora, mas ninguém se comove. É “se ele se deter” pra cá, “se eu me manter pra lá”, “se você se conter” pra todos os lados. A turma esqueceu (ou nunca aprendeu) que o pai do futuro do subjuntivo é conhecido. Trata-se da 3ª pessoa do plural do pretérito perfeito do indicativo sem o am- final:
Pretérito perfeito: eu tive, ele teve, nós tivemos, eles tiver(am)
Futuro do subjuntivo: seu eu detiver, ele detiver, nós detivermos, eles detiverem; se eu mantiver, ele mantiver, nós mantivermos, eles mantiverem; se eu contiver, ele contiver, nós contivermos, eles contiverem.
Mais detalhes
A moçada costuma dizer “maiores detalhes”. Cruz-credo. Detalhe não se mede por metro. A gente quer mais detalhes. Quer também mais informações, mais trabalho, mais dinheiro.
Resumo da ópera: texto jornalístico e língua portuguesa podem andar de mãos dadas. Cá entre nós — formam bela parceria.