Houaiss no banco dos réus 3

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Al Martin

Em 1945, terminada a Segunda Guerra, o mundo descobriu horrorizado a enormidade cometida pelos nazistas. A chacina sistemática de milhões de humanos foi classificada como genocídio. A legislação de vários países passou a punir os chamados negacionistas — aqueles que ousem negar, por exemplo, que tenha havido câmaras de gás ou que judeus tenham sido assassinados em massa.

A Corte Penal Internacional, criada em Roma em 1998, incluiu na mesma categoria as matanças praticadas durante os conflitos étnicos e religiosos da antiga Iugoslávia. A ninguém, até hoje, ocorreu negar a veracidade desses crimes. São recentes e estão fartamente documentados, filmados, fotografados. O não reconhecimento é virtualmente impossível.

Em janeiro passado, a Assembleia Nacional francesa aprovou um projeto de lei incluindo na categoria de genocídio a exterminação planejada e sistemática de centenas de milhares de armênios, perpetrada pelos turcos nos idos de 1915. A partir de então, os que ousassem negar a existência desse crime contra a humanidade passaram a ser considerados criminosos e a ter de se haver com os rigores da lei.

O que aconteceu com os armênios cem anos atrás é assunto ultrassensível na Turquia. A aprovação da nova lei abalou a relação entre a França e o país anatólico. A votação do Senado francês chegou a ser transmitida ao vivo pela televisão turca. A decisão dos parlamentares franceses provocou a cólera de Ânkara e ameaça de boicotes vários.

Pois nesta terça-feira 28 de fevereiro o Conselho Constitucional da França, o chamado «Conselho dos Sábios» — instância apta a julgar a constitucionalidade de leis e decretos —, censurou a nova lei. O Conselho considera que o legislador atentou contra o exercício da liberdade de expressão e de comunicação.

Citando Robert Badinter, respeitado ex-Ministro da Justiça da França, «o Parlamento não pode se transformar em tribunal da história mundial». Estou com ele. Essa decisão parisiense tem tudo a ver com a controvérsia que anda envolvendo os (poucos) bons dicionários com que nossa maltratada língua pode contar.

Alguém precisa urgentemente avisar aos que insistem em amputar trechos «politicamente incorretos» de Aurélios, Houaiss & quejandos que os dicionaristas não são donos da língua. Num labor fenomenal e altamente meritório, limitam-se a coletar, codificar, ordenar, classificar os vocábulos. Amputar entradas de dicionários faz tanto sentido quanto censurar trechos de Jorge Amado por conterem palavrões.

Recato, bons modos, elegância, estilo, — em uma palavra: educação — não se aprende em dicionários. Todos conhecemos uma coleção de palavrões. Constam de todos os dicionários. No entanto, a educação que recebemos nos impede de pronunciá-los a torto e a direito. Cada um tem de aprender quando, onde e como pode dizer isto ou aquilo, esse é o caminho. O simples banimento de palavrões dos dicionários não conduzirá ao desaparecimento dos «bocas-sujas».

É ainda mais assustador constatar que esse tipo de decisões dignas de big brother aconteçam num país em que palavras desaparecem, o campo semântico de outras encolhe, o empobrecimento vocabular se generaliza, a cultura míngua, a história se reescreve. O Brasil não precisa disso. Ninguém merece.