Houaiss no banco dos réus 12

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Santa Ignorância

Danilo Nogueira

Dicionário Rubrica: lexicologia.

Compilação completa ou parcial das unidades léxicas de uma língua (palavras, locuções, afixos etc.) ou de certas categorias específicas suas, organizadas numa ordem convencionada, ger. alfabética, e que fornece, além das definições, informações sobre sinônimos, antônimos, ortografia, pronúncia, classe gramatical, etimologia etc. ou, pelo menos, alguns destes elementos [A tipologia dos dicionários é bastante variada; os mais correntes são aqueles em que os sentidos das palavras de uma língua ou dialeto são dados em outra língua (ou em mais de uma) e aqueles em que as palavras de uma língua são definidas por meio da mesma língua.] (Houaiss)

Dr. Cléber Eustáquio Neves perdeu uma excelente oportunidade de ficar calado e sua biografia ganhou uma nódoa, porque, antes de ingressar em juízo, reclamando de dicionário, deveria ir procurar aprender o que era um dicionário. Poderia começar lendo a definição, do próprio Houaiss, reproduzida acima.

Um dicionário da língua, Dr. Cléber, como o Houaiss, é um registro, quanto mais realista, melhor. O dicionário tem de refletir a língua com casca e tudo. O dicionário, ao contrário do que pensam alguns, não prescreve como se deve falar ou escrever bem (na opinião do autor): descreve como se fala ou escreve na realidade. Quer dizer, o dicionário da lígua não é prescritivo, é descritivo. Existem dicionários prescritivos, do tipo “dicionário de dúvidas”, mas isso é outra coisa. São importantes, muito importantes, mas outra coisa.

O fato é que um senhor, cigano, não concorda. Procurando “cigano” no Houaiss, encontrou, entre outras coisas, isto: “(1899) Uso: pejorativo. que ou aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e não gostou. Não gostou de ver seu povo acoimado de trapaceiros, velhacos e burladores. Eu também não gostaria, no lugar dele.

Aparentemente, entretanto, escapou ao senhor cigano (não lhe sei o nome, a notícia diz que é cigano), que o lexicógrafo não está dizendo que os ciganos sejam trapaceiros e velhacos: está dando o seu testemunho de que, em português, ocorre a palavra “cigano” com esse sentido. Porque o dicionarista é uma testemunha, só isso. Uma testemunha altamente especializada, mas nem por isso menos testemunha.

Que esse fato tenha escapado a esse senhor, cuja formação acadêmica desconheço, ainda vá lá. Mas um advogado deveria saber dessas coisas. E deveria também saber que não se pune a testemunha que diz a verdade, por mais desagradável que ela seja. Imagine, Dr. Cléber, se, o juiz perguntasse à testemunha o que o réu tinha dito e a testemunha respondesse “Vou te matar, seu vagabundo!” e o juiz, condenasse a testemunha pelo raio de crime que possa ser ameaçar matar alguém — nomeadamente o próprio juiz.

Além de muita ignorância, o caso esconde alguma ingenuidade, ou talvez hipocrisia. Tudo se passa como se, ao eliminar um par de acepções do dicionário, fôssemos eliminar os preconceitos da sociedade contra os ciganos (que não são exclusivamente brasileiros nem modernos). Meio assim como se a solução para os problemas de trânsito fosse proibir as imagens dos engarrafamentos na imprensa.

O problema, agora, é que a Editora Objetiva avisa que já tirou do Houaiss as referências ofensivas aos ciganos, dessa forma privando os usuários do dicionário de uma informação importante. Ou seja, dobrou-se sem resistir, numa atitude covarde, pusilânime. Ainda bem que tenho um Houaiss antigo. Não quero um que tenha passado pelo nihil obstat de um advogado que de lexicografia não entende nada.

A Lexicon, por outro lado, publicou uma nota explicando em português à altura de qualquer um o que raio é um dicionário. Subiram no meu conceito.

Fico por aqui. Dá vontade de escrever mais e não falta material. Mas este blogue tem lá seus limites. Santa ignorância! Eita turminha doida por uma censurazinha, não?

P.S. Estava para postar este arquivo quando nossa colega e minha grande amiga (e lexicógrafa) Roseli D. dos Santos me avisa que “o Houaiss do UOL tirou o verbete “cigano” do dicionário”. Gente, que horror, isso está pior que no tempo da ditadura. Estão com medo de quê? Então vou pedir a você, que está me lendo: divulgue essa palhaçada como puder. Escreva no seu blogue, escreva no Facebook, divulgue este artigo, faça alguma coisa. Mas se eles não têm coragem, nós temos de ter.

(Extraído do blogue Tradutor Profissional. Colaboração do Al Martin)