Há erros e erros

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    Errar é humano. Deus nos livre da pessoa que só quer acertar. Ela vive na defensiva. Medrosa, treme só de pensar em correr riscos. Não tenta nada. Esquece-se de que os erros de uns servem de lição para outros. Daí o conselho de Samuel Beckett: “Tente de novo. Erre de novo. Erre melhor”.
  O toque vale para o Marco Aurélio. Ele cursa o pré-vestibular. Perfeccionista, nega-se a apresentar redações ao professor. Só o fará quando puder tirar 10. Se possível, com louvor. Para chegar lá, pede ajuda ao blog. “Existe uma hierarquia de erros?”, pergunta.
  Existe. Na língua, há quatro níveis de erros. O primeiro pertence ao mundinho da grafia. O segundo, da sintaxe. O terceiro, da lógica. O último, da adequação. Conhecê-los ensina uma verdade. Cursos, estudos, leituras ajudam a subir degraus. Aprimoram. Sem perceber, compreendemos melhor os recados. E damos recados mais claros. 
 
Primeiro nível
  Tropeçar na grafia das palavras é marca de quem não tem familiaridade com a língua escrita. É o caso de criança em processo de alfabetização. Ela troca, acrescenta ou omite letras. Esquece os acentos. Não está nem aí pros hifens. Os cadernos infantis estão cheios de pérolas como esta:
Os mininos forão au ospitau.
  Na língua falada, não se percebem as falhas. Só na escrita. A consulta ao dicionário ajuda a sair da enrascada. O paizão registra a forma certinha. Quando fixamos a grafia, mandamos os Aurélios da vida pras cucuias. Escrevemos hospital com h sem pensar. E sem necessidade de desvendar a origem do vocábulo. O milagre se deve ao olho. De tanto ver o trissílabo com h, o cérebro grava a carinha dele. Aí, pronto. Ninguém o segura.
  Conclusão: Leia. Leia. Leia. 
 
Segundo nível
  “Liberdade completa ninguém desfruta”, escreveu Graciliano Ramos. “Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com o Dops.” É isso. Na frase, as palavras vivem regime de escravidão. Ficam amarradinhas. Adjetivos, pronomes e artigos prendem-se ao nome. Advérbios, ao verbo. Concordâncias, regências, pontuação têm tudo a ver com o segundo nível. Observe a frase:
  Os menino foi aos hospital.
  Pelos critérios do 1º nível, a danada está pra lá de certa. Soltinhas, as palavras merecem nota 10. Então, o buraco é mais embaixo. Quem cai nele desconhece concordância. Ignora que o artigo concorda com o substantivo. O verbo, com o sujeito.
  Esse tipo de erro compromete mais que o anterior. É visível na língua falada e na escrita. Em provas, tira preciosos pontinhos. Valha-nos, Deus! Não adianta ir ao dicionário. O pai de todos nós dirá que as palavras estão do jeitinho que o professor gosta. A receita é outra. Bem-vinda, sintaxe. 
 
Terceiro nível
  A língua é conversadeira. As palavras batem papo sem parar. As frases vão atrás. Os parágrafos também. São todos presos uns aos outros. O primeiro passo conduz ao segundo. O segundo, ao terceiro. O terceiro, ao quarto. E assim caminha o texto. Quem ignora a coesão das partes escreve mostrengos como este:
Os meninos foram ao hospital. O supermercado estava lotado.
  Protegei-nos, Senhor! Que relação o primeiro enunciado tem com o segundo? Nenhuma. O autor queimou etapas. É como querer construir o 3º andar de um prédio antes do segundo. Não dá. O edifício desaba. O texto fica sem sentido. A saída? Deixar a preguiça pra lá. O pedreiro ergue o 2º andar. O escritor expõe o omitido:
  Os meninos foram ao hospital. No caminho, passaram no supermercado para comprar frutas. Não compraram nada. O supermercado estava lotado.
  A desconexão é pra lá de comum em trabalhos em grupo. Boas-vidas, os estudantes dividem tarefas. Um se encarrega da introdução. Outro, do desenvolvimento. O último, da conclusão. Na data fatal, reúnem-se. Grampeiam as partes. E entregam ao professor. O resultado? É o samba do texto doido. As partes ficam incomunicáveis. Uma não entende a outra. 
 
Quarto nível
A adequação? Ops! É tão importante que merece tratamento privilegiado. Será tema de próximo post.