JOSÉ HORTA MANZANO Em 1958 o Brasil ganhou a Copa. Pasternak levou o Nobel de literatura. Batista, acossado por Fidel e seu bando, fugiu do país. Nasceram Michael Jackson, Madonna, Sharon Stone e Albert de Mônaco. Mas nenhum desses fatos terá deixado consequências tão profundas como o acesso de um grande personagem às altas esferas do poder na França.
No final da Segunda Guerra, quando os canhões se calaram e a hora dos acertos soou, Charles De Gaulle, general carismático, conseguiu convencer o mundo de que a França havia ganho a guerra e que merecia seu lugar à mesa de concertamento. A verdade não era bem essa. Em maio de 1940, uma blitzkrieg alemã de poucas semanas havia varrido do mapa o prestigioso exército francês. Seguiu-se a humilhação da ocupação e um cortejo de anos de privações. Porém, na euforia do fim do conflito, o general ganhou pela insistência. A França foi acolhida à mesa dos vencedores, como se um deles fosse.
Sic transit gloria mundi, toda gloria é passageira. O general vitorioso, inútil em tempos de paz, foi sumariamente aposentado por um povo que queria mais atirar-se de cabeça na excitante modernidade que aportava no bojo do Plano Marshall.
Finda a euforia, baixada a poeira, a realidade recrudesceu: guerras coloniais, atentados, a Europa dividida em dois blocos, uma Alemanha que ainda assustava. Foi quando o povo francês se lembrou de que o velho leão ainda estava vivo. E foram buscá-lo para o papel de messias. Em 1958, De Gaulle recebeu poderes imperiais e carta branca para conduzir o país. Coincidiu com a entrada em vigor do Tratado de Roma, que cristalizava a ânsia pela paz, pela segurança e pela união.
As diferenças entre os países fundadores eram muitas. O tempo havia de resolvê-las, mas uma delas estava a exigir decisão imediata: a questão linguística. Os seis países somavam quatro línguas oficiais. Seria impensável promover apenas uma delas em detrimento das demais. Era inadmissível instalar um dos membros num patamar acima dos outros.
Cogitou-se adotar uma língua artificial como idioma comum a todos os europeus. No espaço de uma geração, viriam as vantagens: os europeus seriam todos bilíngues; o respeito às línguas maternas estaria mantido; a língua comum, por ser um idioma aprendido, não privilegiaria nenhum povo. O Esperanto preenchia com maestria os requisitos.
Mas isso tudo era sem contar com nosso velho De Gaulle, homem do século 19, nacionalista e guardião da grandeur francesa. Jamais admitiria que se impusesse a seu povo uma segunda língua. Guardava a secreta esperança de que o francês se tornasse a língua franca da Europa Unida. Nessa expectativa, mandou às favas a adoção de uma língua artificial. O resultado conhecemos: no Parlamento Europeu, cada deputado tem o direito de se exprimir em sua língua materna.
A situação linguística hoje frisa o caos. O organismo conta com 23 línguas oficiais. Isso resulta em 506 combinações possíveis de tradução e interpretação. Cada parlamentar tem o direito de enfiar o fone de ouvido e receber, em sua língua materna, a tradução simultânea do discurso que estiver sendo pronunciado. Como não existem intérpretes capazes de traduzir, por exemplo, do estoniano para o maltês, a translação tem de ser feita em duas etapas: do estoniano para o inglês, em seguida do inglês para o maltês. Com toda a perda de tempo e de qualidade que isso implica. Como se vê, a turra do general tem custado caro.
Em nossas plagas, temos o Mercosul. É embrionário, o que nos dá a tremenda chance de evitar erros cometidos na Europa. Mas o perigo ronda. Faz alguns meses, o diário paraguaio ABC falou em pleitear a introdução do guarani entre as línguas oficiais da união aduaneira em construção. Parece-me uma ideia temerária.
Todos os paraguaios alfabetizados conhecem o espanhol. Se, em nosso modesto bloco, damos conta do recado com somente duas línguas, por que razão acrescentar mais esse ônus? Por que entreabrir a porta a uma situação inextricável?
A bola da vez é o guarani. Se entrarem a Bolívia e o Peru, os falantes de quêtchua e de aimará vão reivindicar o direito a incluir sua língua no rol das oficiais. Em nosso próprio país, 180 línguas indígenas sobrevivem — ainda que poucos brasileiros se deem conta disso. Se exceção for aberta para o guarani, poucos anos bastarão para que todos os autóctones exijam o mesmo direito. Será impossível eludir.
Sem menosprezar as línguas nativas, saibamos dar o devido valor à facilidade de comunicação que o destino nos legou.