As sete pragas da língua

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 O Egito tem fama. E pode dormir na cama. Ali viveu Cleópatra, que despedaçou corações imperiais. De lá veio Nefertite, a mais perfeita obra de arte de todos os tempos. Lá estão as pirâmides que desafiam o tempo. Pelo deserto, corre o Nilo, fio de água que fertiliza a terra torrada.
        
O país experimentou a ira de Deus. Por quê? O faraó escravizou os judeus. Negava-se a libertá-los. O Senhor, impaciente, castigou-o. Puniu a desobediência com 10 pragas. (O povo, atento ao número cabalístico, transformou a dezena em sete). O Todo-Poderoso transformou água em sangue. Derramou três dias de trevas sobre a nação. Matou, numa noite, todos os primogênitos. E por aí foi. O governante, vencido, cedeu.
        
A língua também tem suas pragas. São vícios. Surgem tímidos. Depois, ganham espaço no rádio e na TV. Alastram-se. Aí, dá no que dá. Enfeiam a língua. Irritam os falantes. Provocam o Paizão. O exemplo egício manda pôr as barbas de molho. Antes que o Criador perca a paciência, cuidemos da linguinha nossa de todos os dias.
 
Primeira praga
 
         Gerundismo. Olho vivo! Esse vício não tem perdão. Se você é do time que diz “vou estar mandando, vou estar providenciando, vou estar podendo fazer”, só tem uma saída. Use as formas portuguesas vou mandar ou mandarei, vou providenciar ou providenciarei, vou poder fazer ou poderei fazer. Se se fizer de bobo, prepare seu rico corpinho. Ele vai arder no mármore do inferno por toda a eternidade. Deus o livre!
 
Segunda praga
 
          Eu apaixono. Vaaaaaaaaaaaaaaalha-nos, Papai do Céu! Não nos deixeis fazer economia com os verbos pronominais. Apaixonar é um deles. Transitivo direto, ele pede o objeto direto. Às vezes, o complemento é diferente do sujeito. O verbo tem, então, o sentido de causar paixão. É o caso de “Xuxa apaixona as crianças”. Outras vezes, o sujeito se toma de paixão. O pronome funciona como objeto direto: eu me apaixono, ele se apaixona, nós nos apaixonamos, eles se apaixonam. Dizer “eu apaixono”? A pergunta é inevitável: “Apaixona quem, cara-pálida?” A resposta exigirá um objeto: “eu apaixono os leitores” ou “eu me apaixono”.     
 
Terceira praga
 
Seje, esteje. Xô, satanás! A troca do a pelo e só pode ser coisa do demo. Ele está louco para aumentar a população do inferno. Espalhou a praga. O mal pegou. Os contaminados pagam preço pra lá de caro. Adiam promessas. Perdem amores. Sujeitam-se a gozações. Caia fora. Dê ao verbo o que é do verbo — o a: que eu seja, ele seja, nós sejamos, eles sejam; eu esteja, ele esteja, nós estejamos, eles estejam.
 
Quarta praga
 
        Houveram. Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Que dor! O ouvido grita. Geme. Depois, bate pé. Exige respeito. No sentido de ocorrer ou existir, o houveram não tem vez. Corte-o do seu vocabulário. O ouvinte lhe agradece: Houve (jamais houveram) confusões com os passageiros de ônibus do Distrito Federal. Houve menos candidatos que o esperado. Nunca houve tantas denúncias no país.
 
 
Quinta praga
 
Se eu deter, trazer, pôr, ver. “Cadê meu pai?”, pergunta cada um dos pobres desamparados. “Sou o futuro do subjuntivo. Nasci do pretérito perfeito. Minha mãe é a 3ª pessoa do plural menos o -am final. Ninguém da família pula o muro.” Veja: ontem eu detive, ele deteve, nós detivemos, eles detiver(am). Logo, se eu detiver. Eu trouxe, ele trouxe, nós trouxemos, eles trouxer(am).Portanto, se eu trouxer. Eu pus, ele pôs, nós pusemos, eles puser(am). Assim, se eu puser. Eu vi, ele viu, nós vimos, eles vir(am). Vem, forma nota 10: se eu vir.
 
Sexta praga
 
  De formas que. Já pra rua, s intruso! As locuções conjuntivas (terminadas por que) rezam na cartilha das conjunções (que, porque, se, quando). São invariáveis. Não aceitam plural nem a pedido de todos os santos: Estava preparado, de forma que se saiu bem na prova. A chuva refrescou a cidade, de maneira que trouxe conforto aos moradores. O projeto não a satisfez, de modo que precisou fazer outro.
 
Sétima praga
 
 Comeu carne ao invés de peixe. Tudo vale. Alho, crucifixo, banho de sal grosso ajudam a manter longe a tentação. Recorra a todos os santos. Peça-lhes clareza em relação a ao invés de. O trio indica ideia contrária, contrária mesmo (dormiu ao invés de ficar acordada, comeu ao invés de fazer jejum, chorou ao invés de rir, mexeu-se ao invés de manter-se imóvel). Para acertar sempre, fique com em vez de. O trio significa em lugar de. Bivalente, signfica também ao invés de: Morreu em vez de viver. Comeu peixe em vede carne. Pegou o ônibus em vez do avião. Foi ao teatro em vez de ir ao cinema. Comeu em vez de jejuar.
 
 
Moral da história
 
         Os egípcios quiseram testar o Senhor. Levaram na cabeça. Com eles, aprendemos a lição: manda quem pode. Obedece quem tem juízo. Em outras palavras: o chefe tem sempre razão.