Alergia a gente

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Ops! As chuvas chegaram. Com elas, há cidades que sofrem. Ruas se alagam, morros despencam, multidões ficam desabrigadas. Há, também, cidades que festejam. É o caso de Brasília. Depois de seca impiedosa, a água que cai do céu é pra lá de bem-vinda. A grama renasce, as flores explodem, os moradores festejam. Mas num ponto as duas pontas se encontram. Trata-se do s verbos que indicam fenômenos da natureza. Entre eles, chover, ventar, nevar, trovejar, amanhecer, entardecer, anoitecer & cia.

Os senhores do tempo têm uma marca. Alérgicos a gente, são impessoais. Sem sujeito, só se conjugam na 3ª pessoa do singular. Exemplos existem pra dar e vender: Na quarta, choveu em Brasília. Raramente neva no Brasil. Que medo! Trovejou a noite inteira. Nesta época do ano, amanhece cedo na maior parte do país. Talvez vente menos nesta primavera.
 

Mudança de papel
 
 

Os verbos, como as pessoas, detestam a monotonia. Pra fugir do sempre igual, inventam modas. Uma delas: mudar de papel. Impessoais se tornam pessoais; pessoais, impessoais. Como? Os primeiros arranjam sujeito. Os segundos, passam pro time dos indicadores de tempo.

Pra tornar-se pessoais, os intolerantes perdem o sentido literal e assumem o figurado. Assim ganham licenças poéticas e superpoderes. Quer ver? Choveram aplausos depois da apresentação dos atletas paraolímpicos. Os mandachuvas trovejaram desaforos ao verem as instalações danificadas. Amanhecemos alegres. Anoiteceram no aeroporto à espera do avião que não vinha. A vida entardece sem que a pessoa se dê conta.

 
Caminho inverso
 
Ser, estar, fazer são normalmente pessoais. Conjugam-se em todas as pessoas sem discriminação (eu sou, ele é, nós somos, eles são; eu estou, ele está, nós estamos, eles estão; eu fiz, ele fez, nós fizemos, eles fizeram). Mas, volta e meia, mudam de time. Viram impessoais. Em expressões de tempo, só se flexionam na 3ª pessoa do singular: É tarde. É cedo. Era uma tarde de abril. Era ao cair do dia. Era a hora do repouso. Está tarde. Faz frio. Faz calor.
 

Reforços
 
Fazer figura no time dos impessoais em outro emprego. Junto com o haver, mantém-se na 3ª pessoa do singular ao indicar contagem de tempo: Faz cinco anos que moro em Brasília. A chuva começou a cair em Belô, há uma semana. Fazia quatro anos que trabalhava na empresa quando pediu demissão. Ao ser descoberto, fazia cinco anos que morava em São Paulo. Cheguei há pouco. Viajou faz pouco.
 

Vem comigo
 
Os impessoais, além de intolerantes, são exigentes. Estendem a impessoalidade aos auxiliares. “Quer andar comigo?”, perguntam. “Seja igual a mim. Mantenha-se na 3ª pessoa do singular.” Assim: Faz cinco anos que cheguei a Brasília. Deve fazer cinco anos que cheguei a Brasília. Vai fazer cinco anos que cheguei a Brasília. 

 
Redundâncias
 
O haver é pra lá de pão-duro. Não suporta desperdício. Não é outra a razão por que rejeita a preposição atrás. “Há duas horas atrás”? Nem pensar. Há indica passado. Atrás, também. Usar os dois na mesma frase maltrata o bolso e a língua. Melhor recorrer a um de cada vez: Encontrei Zélia Duncan há duas horas. Encontrei Zélia Duncan duas horas atrás.
 

Por falar em haver…

Reaver tem toda a pinta de derivado de ver. Mas não é. Você sabe quem é o pai dele? Acredite. Reaver é filhote de haver. Significa haver de novo, recuperar: A casa de Maria foi assaltada. Os ladrões levaram dólares e jóias. A polícias os prendeu. Mas não conseguiu reaver nada.
 
Reaver tem um grande defeito. Não se conjuga em todos os tempos e modos. Com ele, só têm vez as formas em que aparece o v, de haver. No presente do indicativo, por exemplo, apenas o nós e o vós ganham passagem: nós reavemos, vós reaveis.

O indolente não tem o presente do subjuntivo. Mas exibe todas as pessoas do passado e do futuro: reouve, reouvemos, reouveram; reavia, reavias, reavíamos; reaverei, reaverão; reaveria, reaverias, reaveríamos, reaveriam; reouver, reouveres, reouvermos; reouvesse, reouvéssemos. E por aí vai.

Eis exemplos do emprego do verbo preguiçoso: O pai reouve a confiança do filho. Sempre que possível, ele reavia o dinheiro perdido no jogo. Ainda reaverei os pontinhos que perdi na prova. Quando reouver as jóias, Maria vai vendê-las. Se eu reouvesse minha herança, faria longa viagem pelos cinco continentes. Adeus, monotonia!

Cuidado com as tentações. Reavê, reaviu, reaveja não existem. Seriam derivados de ver. E reaver vem de haver. Mas não se sinta desamparado. Eles não fazem falta. Recuperar ou recobrar os substituem numa boa.