Adeus aos mortos

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Dad Squarisi // dadsquarisi.df@@diariosassociados.com.br

O acidente da Air France matou 228 pessoas. Muitos pensavam que os corpos ficariam pra sempre no fundo do mar. Enganaram-se. Cinquenta emergiram. Os outros teimam em permanecer onde estão. A cada dia torna-se mais difícil obter algum resultado nas buscas. Logo os encarregados da procura baterão ponto final. Eis a questão: como dizer às famílias que não terão notícias de seus mortos?

A simples suspeita da desistência provocou protestos. Explica-se. Em todas as culturas, os vivos não podem se furtar ao dever de dar descanso às almas. Cada uma, a seu modo, vive o rito de passagem. O tema, aliás, mereceu belas páginas da literatura. O drama de Antígona, filha de Édipo e Jocasta (da tragédia Édipo Rei), se resume à luta para salvar o irmão da condição de insepulto. Seus dois irmãos, Polinice e Etéocles, matam-se um ao outro. Creonte proíbe o enterro de Polinice. Ela vai à luta. Não mede esforços até cobrir o cadáver com um pouco de terra “para afastar o horror”.

King Richard II, de Shakespeare, exclama: “Toda a extensão do meu reino por uma pequena sepultura, uma pequena, pequenina sepultura, uma ignorada sepultura”. A maldição do pai, em I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, recai na privação da sepultura. Pensando que o filho havia chorado de medo, o velho guerreiro joga-lhe uma série de pragas. A pior: “Um amigo não tenhas piedoso / que teu corpo na terra embalsame / Pondo um vaso d´argila cuidosos / Arco e flecha e tacape a teus pés”.

No tempo das Cruzadas, quando morria um cavaleiro cristão em terra de mouros, uma providência se impunha. O corpo era picado e fervido num caldeirão até a carne se destacar dos ossos, os únicos a voltarem à pátria. Lá deveriam receber sepultura digna. O cancioneiro popular guardou a memória do remoto costume: “Bão, ba-la-bão, / Senhor capitão, / Em terra de mouro / Morreu seu irmão / Cozido e assado / No seu caldeirão.

Resta a pergunta: o fundo do mar será morada digna? Digo que sim. As famílias das vítimas do voo 447 talvez concordem. Mas a dor da perda é tão grande que custa aceitar o nunca mais. Fica, então, a esperança. Enquanto não se dá adeus ao corpo, o ente querido continua a ser esperado. A espera consola. Dá a sensação de que ele voltará.

(artigo publicado na editoria de Opinião do Correio Braziliense)