AFONSO ROMANO DE SANT´ANNA
O poema “A implosão da mentira” nem é mais meu. Já foi usado em tribunais, processos, sermões, comícios, aulas, antologias, pôsteres, internet etc. Transcrito recentemente em jornais, foi ligado ao fato de que o atual governo mente e logo desmente, e assim vai fazendo o seu discurso. Isso remete para uma questão mais ampla: as características do discurso político. Cada profissão produz um tipo de discurso. Dizia aquela velha raposa mineira – Magalhães Pinto: política é como a nuvem, está sempre mudando. E, evidentemente, o discurso vai mudando como a nuvem.
Mas tem uma coisa que não muda tanto quanto as nuvens: a linguagem do poder. Outro dia ouvi o ministro da Justiça, que é um democrata, falar sobre a greve dos policiais na Bahia. O discurso era semelhante ao dos ministros da Justiça do regime militar: falava de ordem, hierarquia e que anistia não é para criminoso. A fala da presidenta sobre o assunto não foi diferente – embora, entende-se, diametralmente oposta à fala de uma guerrilheira.
Uma nova ministra que assumiu nesses dias frisou que, no poder, sua opinião pessoal não conta. Agora descobriram uma declaração antiga do hoje governador da Bahia, Jaques Wagner, incitando a greve de policiais. Já Lula é um mestre em moldar discursos. Repito: o poder tem um discurso próprio. Ou seja, tem sua sintaxe, tem sua semântica, em síntese: tem sua lógica discursiva.
O poder é um “lugar” determinado e esse “lugar” é que gera seu discurso. E isso não é uma invenção do PT ou do Brasil. Em toda parte é assim. Vejam o filme Tudo pelo poder, com George Clooney: o candidato democrata vai mudando seu discurso de acordo com sua assessoria e de acordo com os votos que precisa conseguir. Sua opinião pessoal é irrelevante. Pode dizer o contrário do que pensa, pois o que interessa é o poder. O próprio Obama está tendo que ajeitar seu discurso às circunstâncias eleitorais.
Dizem alguns que o poder é trágico. O antigo ministro da Justiça Milton Campos dizia que hoje o poder é triste; e o general Geisel, que parecia todo-poderoso, entristecido, reconheceu o mesmo numa entrevista dada lá no Japão. Há quem diga que o poder é (necessariamente) cínico. O fato é que a primeira coisa que quem chega ao poder descobre é que o poder não pode. Até os ditadores têm que negociar.
Aquele poema – “A implosão da mentira”– foi publicado na ditadura do general Figueiredo. E hoje (infelizmente) continua atual. O poder, ontem ou hoje, tem uma estrutura e uma linguagem próprias. O poder ou assume o poder ou cai do poder. Poder não é para principiantes. Boas intenções só não funcionam. Poder é uma técnica de persuasão, que o digam tanto os líderes democratas que admiramos quanto os ditadores.
O esforço de persuasão pela linguagem está praticamente em todas as profissões, do sacerdote ao jornalista. Está (veladamente) até na crítica de arte. No livro O enigma vazio mostrei os sofismas da estética contemporânea. O sofista é treinado para provar discursivamente qualquer coisa. O escritor, neste sentido, é um privilegiado. Usa a linguagem para revelar, não para esconder. Isso tem suas consequências. Volta e meia um escritor é punido por isso.
Quando, há uns 20 anos, eu estava no “poder” (num modesto segundo escalão), um ministro queria me forçar a nomear uma pessoa, pois era uma ordem que vinha de Brasília. Disse-lhe que queria ver essa ordem por escrito. Ele disse: “Em Brasília ninguém escreve o que diz”. Respondi: “Então, estamos num impasse, pois na minha profissão de escritor escrevo e assino o que penso”. E a nomeação não saiu. E eu continuo escrevendo exatamente o que penso.