Rachel de Queiroz
Um americano meu conhecido, tendo que vir ao Brasil a serviço, achou que, sendo sofrível no espanhol, se viraria por cá. E se virou. Ontem me apareceu com um jornal na mão, declarando que, para ler os temas gerais, ainda sentia dificuldades, mas nas páginas de arte, canto, teatro, cinemas e, principalmente, nas páginas esportivas, só precisava entender os verbos, já que tudo o mais era em inglês. Deturpado um pouco, é verdade, mas dava para sacar.
Antes da Grande Guerra (14—18), quem dominava o mercado internacional da língua era o francês. Era em francês que conversavam as grã-finas (quer dizer a “elite”), que falavam os intelectuais, as freiras dos colégios onde a mocidade estudava. Mas, com a vitória dos americanos naquela guerra e com o domínio mundial que assumiram depois da segunda, o francês foi para o beleléu. Só gente antiga é que hoje ainda sabe algum francês. Até em Paris, em qualquer lugar, nos restaurantes, nas lojas, nas ruas, o inglês-americano corre tão solto quanto aqui.
Esse negócio de língua estrangeira em pais colonizado é fogo. A começar que a nossa própria língua oficial, o português, nós a recebemos do colonizador luso, o que, aliás, foi uma benção. Imagina se, como na África, nós tivéssemos idiomas nativos fixados em extensão e profundidade; ou, então, se fosse realidade a fala da “lingua geral” dos índios, que alguns tentaram, mas jamais conseguiram impor como língua oficial do brasileiro. Mesmo porque as inumeráveis tribos indígenas que povoaram outrora e que ainda remanescem pelos sertões, cada uma fala o seu dialeio. O pataxó, por exemplo, não tem nada a ver com o falar dos amazônicos — pelo menos é o que nos informam os especialistas.
Mas, deixando de lado os índios, falemos dos descendentes dos índios que nós, pelo menos, pretendemos ser: falemos de nós, os brasileiros, com o nosso português adaptado a estas latitudes e língua oficial dos nossos vários milhões de nativos. Pois aqui no Brasil, se você for a fundo no assunto, toma um susto. Pegue um jornal, por exemplo. É todo recheado de inglês, como um peru de farofa.
Nas páginas dedicadas ao show business, então! Começa logo com isso de show business, que não se pode traduzir literalmente por “arte teatral” — tem significação muito mais extensa, inclui as apresentações em várias espécies de salas, ou até na rua — tudo é show. E o leitor do noticiário, se não é escolado no papo, a todo instante tropeça e se engasga com rap, punk, funk, soap-opera etc.etc. Cantor de forró do Ceará ou de Recife ou da Bahia só se apresenta com o seu song book onde as melodias podem ser originalmente nativas, mas têm como palavras-chave esse inglês bastardo que eles inventaram e que não se sabe se os próprios americanos entendem.
No esporte é a mesma coisa ou pior. Já que todos os nossos esportes foram importados (e até a palavra que os representa, esporte, é de origem inglesa). O meu querido ministro Pelé tenta descaracterizar um pouco o neologismo, chamado-o de “desporto”. Mas não pega,
Verdade que o jornalismo esportivo procura aclimatar o dialeto, traduzindo como pode os nomes importados — gool-keeper já é goleiro, back é beque, e há traduções já tão assimiladas que ninguém diz mais senão “centroavante”, “meio de campo” etc.
Engraçado sermos um país tão apaixonado por esporte, especialmente o futebol (que não é mais foot-ball), e nunca termos sido capazes de inventar nenhuma modalidade de peleja esportiva (os índios têm lá os jogos deles, mas devem ser ou muito chatos ou difíceis porque a gente não os conhece nem de nome. Ficamos nas adaptações tipo futevôlei, que, pelo menos, é engraçado.
Lembram-se de uma marchinha de muitos anos atrás, em que o cantor pedia a morena que “deixasse a mania do inglês”? A gente não se dava conta, mas já era a terminologia americana se tornando absoluta: um must, como eles dizem agora. Afinal os americanos ficaram mesmo donos do mundo. Mais donos do que os romanos dos césares, porque, sob os césares de hoje, o mundo é muitíssimo maior.
Se houvesse novas encarnações, eu gostaria de voltar à Terra depois de bastantes anos, só para ver como estarão falando os nossos semelhantes. Provavelmente, creio, algum idioma novo nascido do americano e localmente adaptado, como aconteceu com a língua latina – mãe do italiano, do francês, do espanhol, do português, que são filhos legítmos; e mais as filhas bastardas, que se espalham por Ásia e África. E os nossos livrinhos, os que sobreviverem no tempo — um Eça, um Machado, talvez? – terão que ser traduzidos, ou pelo menos atualizados, façanha mais difícil até do que o que tentamos e não conseguimos fazer com um Gil Vicente e outros veneráveis antepassados.
(Crônica publicada no Correio Braziliense de 18.10.97. Colaboração de Roldão Simas Filho.)