QUAL É A SUA HISTÓRIA SOBRE A COMIDA AFETIVA? – VII – responde Eliane Regis

Publicado em comidas afetivas

Qual é a sua história sobre comida afetiva? Aqueles pratos da sua infância que vinham da cozinha da sua mãe ou da sua avó. Pratos que são mais do que simples alimentos, que representam gestos de carinho, envolvem emoções, memórias e trazem um senso de pertencimento.

Qual é a sua “Madeleine de Proust”? Aquele sabor ou cheiro que o transporta para o passado, evocando memórias profundas e, muitas vezes, inesperadas.

Eliane Regis, é paraibana, mãe de meninas e avó de uma flor, filha e neta de agricultores. Chef de cozinha, cozinheira de coração, pesquisadora praticante.

 

“Nasci em Campina Grande, Paraíba. Desde pequena, sempre fui sonhadora e amante da natureza. Sonhava em ser aeromoça, mas a vida me conduziu ao universo das panelas. Cresci brincando nas matas do sítio dos meus pais. Nas horas de lazer, pegava a carroça de mão, carregada de alimentos, utensílios, redes e lençóis, e partia com meus irmãos para a mata próxima. Lá, montávamos acampamento, cozinhávamos e, de sobremesa, colhíamos as frutas da estação — entre elas, o incó. Ao final do dia, voltávamos felizes para casa.

Outra diversão era a visita quase diária à casa dos meus avós maternos, apenas três quilômetros de distância, percorridos a pé, mas sempre com muita alegria. Pelo caminho, passávamos por árvores frutíferas, como massaranduba, caju e manga. A casa dos meus avós era um lugar muito especial, com muitas árvores frutíferas, uma casa de farinha, uma barragem (lago com água), além das comidas mais deliciosas.

Na safra do caju, meu avô me deixava pegar as castanhas para serem vendidas, o que me proporcionava algum dinheiro para gastar nas festas locais ao longo do ano. Toda sexta-feira íamos à casa dos meus avós, onde permanecíamos até domingo. Minha mãe e minha avó preparavam receitas que até hoje recordo com carinho e eu sempre ajudava, pegando lenha para acender o fogão. A casa de farinha funcionava quase toda a semana, mas era ao final da torra da farinha que minha mãe aproveitava o calor do forno para assar os bolos de pé de moleque, uma tradição que acontecia nas sextas-feiras.

Sábado era o dia em que meu avô e meu tio iam à feira de Campina Grande para fazer compras e abastecer a despensa. A feira de Campina Grande foi reconhecida em 2017 como patrimônio cultural do Brasil. Durante a ausência deles, organizávamos a casa, varríamos o terreiro e minha mãe preparava um almoço delicioso. Quando o sol começava a se pôr, minha mãe assava castanhas no caco (uma vasilha de barro) sobre o fogo de chão. À noite fazíamos chá de capim santo, erva-cidreira, erva-doce e canela. Minha avó nos deixava usar as louças de sua cristaleira e eu me sentia a pessoa mais feliz do mundo. Para acompanhar o chá tínhamos as delícias que eram preparadas nas sextas e sábados.

No domingo, ao anoitecer, meu pai nos buscava de carro de boi ou de fusca. São tempos que guardo com muito amor e carinho.

Mas a melhor época do ano era o mês de junho, durante a festa de São João. Celebrávamos a colheita do milho e nos reuníamos para preparar a grande noite. A festa começava com a ida ao roçado para colher o milho e era marcada por comidas típicas: pamonha, canjica, queijo coalho assado na brasa, batata-doce assada na fogueira e carne de porco. Passávamos o dia inteiro nos preparos, tanto das comidas quanto da ornamentação da casa, com bandeirinhas, toalhas de chita e muita alegria. A montagem da fogueira era tarefa de meu pai e meus irmãos. À noite, com a mesa farta e a fogueira acesa, a festa acontecia até o amanhecer. Ainda mantemos essa tradição.

A viagem para a casa dos meus avós paternos, na cidade de Pedra Branca, no Sertão da Paraíba, também era uma grande aventura, começando pela viagem de fusca, que saía da zona rural de Lagoa Seca. Lembro-me do cheiro da mata no caminho e dos lanches que levávamos até chegar lá. A chegada sempre era uma festa: o fogão a lenha com o caldeirão de ferro, a coalhada sendo escorrida no pano de saco perto da porta da cozinha, o pé de goiaba no quintal, o pé de manga rosa e, mais distante, o poço de onde pegávamos água. Tudo ali tinha algo de especial, até a despensa, que mais parecia um quarto enorme, com sacos de arroz da terra, milho para moer e fazer o pão de milho (cuscuz), rapadura, mel de engenho, galinha de açúcar (pirulito em formato de galinha) e doce de leite.

Rever familiares, brincar com os primos e estar com os avós era motivo de imensa felicidade. Os passeios a pé ou de carro de boi do sítio até a pequena cidade de Pedra Branca, as noites escuras com lampiões acesos, as histórias contadas ao redor do fogão a lenha, os abraços e o descanso na rede da sala com piso rústico, ao lado do silo de grãos. O dia da despedida era o mais difícil, mas sabíamos que no próximo ano estaríamos de volta. Apesar da vida simples, tive uma infância rica em amor, cultura e comida verdadeira.

Aos doze anos, fui para São Paulo morar na casa de parentes, irmão e irmã do meu pai, com o objetivo de estudar e proporcionar uma vida melhor para minha família. Muitos desafios surgiram nessa caminhada, muitos aprendizados e pessoas incríveis, que levo comigo até hoje. Constituía minha família, tenho duas filhas e morei em várias regiões do Brasil. Dediquei grande parte da minha vida ao meu lar, sempre prezando o bem-estar e o cuidado com os meus.

Quando minha filha mais nova completou doze anos, retomei os estudos e surgiu a oportunidade de fazer um curso na área gastronômica. Pensei que seria uma ótima chance para, no futuro, colocar em prática tudo o que aprenderia. Mas, ao fim de apenas duas semanas de curso, já sabia que queria botar em prática os conhecimentos adquiridos o mais rápido possível. A cada semana, novas descobertas me fascinavam. E foi no decorrer do curso que fui apresentada ao movimento *Slow Food*, que busca preservar a biodiversidade, valorizar a ancestralidade e dar reconhecimento a quem produz.

Essa lembrança me veio à mente: meu pai vendia a produção da nossa terra a um atravessador que a revendia para o Ceasa de Campina Grande. Lembro de um dia em que ele recusou uma carrada de coentro, alegando que não valeria a pena comprar. A dor no olhar dos meus pais ficou marcada em minha memória. Naquele momento, não pude fazer nada. Mas hoje, sei que tenho a oportunidade de estudar e colocar em prática o que aprendi, ajudando outras famílias a valorizarem o que produzem.

Antes de concluir o curso, recebi um convite para chefiar os eventos da *Cooperativa Central do Cerrado*, onde permaneci por dois anos. Foi uma imersão nas riquezas mais preciosas que o Brasil tem a oferecer. Tive acesso a diversas comunidades e organizações, além de me tornar uma pessoa mais humana.

No entanto, percebi que precisava seguir em busca da realização de outros sonhos. Compreendi que ainda tenho muito a aprender com as comunidades rurais e que, embora saiba pouco, me sinto mais realizada nos roçados do Brasil. Levei as riquezas de nossa terra para o *Terra Madre*, evento realizado a cada dois anos em Turim, em 2018. Voltei encantada com o aprendizado e com uma fome insaciável de mais conhecimento, apesar das limitações. Saí com a certeza de que preciso, a cada dia, me conectar mais com a vida rural, levando o pouco que sei e me enchendo de sabedoria com os povos que preservam a nossa cultura e biodiversidade.

A mudança depende de cada um de nós. Vivemos em um mundo onde a maioria pensa apenas em seu próprio bem-estar. Eu sonho com um mundo em que todas as pessoas tenham comida na mesa, saúde, educação e um planeta melhor para todos.

 

BOLO PÉ DE MOLEQUE
Ingredientes:

500g de massa de mandioca (massa puba);
3 ovos;
3 colheres de café de cravo em pó;
3 colheres de sopa de canela em pó;
2/3 de xícara de chá de leite de coco;
300gr de coco fresco ralado;
1 pitada de sal;
3 colheres de sopa de manteiga;
2 xícaras de chá de açúcar mascavo ou rapadura ralada;
2 folhas de bananeira medindo 50×25 higienizada.

Atenção: Puba, conhecida como massa puba, é uma palavra derivada do tupi antigo – puba significa “fermentado”, ou pub, “mole” – é uma massa extraída da mandioca fermentada.

Segue o passo a passo de como minha avó e a minha mãe preparavam a massa de mandioca:
2kg de macaxeira descascada;
1 pote de barro ou caldeirão de alumínio de 5 litros;
Água suficiente para encher o pote ou caldeirão.

MODO DE PREPARO
Coloque a macaxeira em um pote ou panela de barro. Complete com água, tampe e deixe de 4 a 8 dias, sempre completando a água, se necessário.
Passados os dias, retire a macaxeira fermentada. Retire os talos e passe a macaxeira por uma peneira bem grossa. Depois lave massa puba e repita o processo de 2 a 3 vezes, coloque a massa em um pano para escorrer.
Esprema para que saia todo o líquido e fique uma massa enxuta. Armazene a massa no refrigerador por uma semana ou no freezer por até 30 dias.

Coloque a massa em uma bacia e acrescente os ovos inteiros, o coco ralado, o açúcar mascavo – ou a rapadura ralada – a manteiga, o leite de coco, a canela e o cravo.

Sele as folhas de bananeira na chama do fogo. Adicione a massa nas folhas de bananeira, formando um quadrado. Amarre como se fosse um pacote ou um envelope – use tiras da própria folha de bananeira para amarrar.
Minha avó e a minha mãe assavam o pé de moleque no forno em que era feita a farinhada, virando para que assassem uniformemente. Mas a forma com que preparei foi assado em uma panela – pode ser frigideira, chapa ou no forno convencional.

 

DICA DO SOMMELIER: Deguste o Bolo Pé de Moleque acompanhado com um bom café coado bem quentinho.

 

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