Bellini, o coquetel de espumante com pêssego nascido em Veneza.
Um bellini em Veneza
Fazia parte de nossa programação em Veneza ir conhecer o mítico Harry’s Bar, que pertence o hotel Cipriani mas que não fica em suas instalações.
Inaugurado em maio de 1931, nove décadas depois, a casa permanece no mesmo endereço, na Calle Vallaresso, 1323, a cem passos da Praça São Marcos. Ir a Veneza e não conhecer o Harry’s Bar é como ir a Roma e não ver o papa ou ir a Paris e não subir na Torre Eiffel, ou vir a Brasília e não comer uma pizza na Dom Bosco.
Fomos descobrir onde era e chegamos na sua porta trajando nossas bermudas, camisetas e ainda calçando tênis, o calor que fazia era inacreditável. O porteiro era muito alto, detesto falar tendo de olhar para cima, e ainda estava mais elegante do que pai de noiva. Ele nos olhou meio espantado, talvez temendo um arrastão. Madame L. soltou um parla italiano em cima dele, junto comigo, que quando fico nervoso falo qualquer idioma, conseguimos a reserva de uma mesa para esta mesma noite.
As meninas, muito precavidas, tinham todas um pretinho básico no fundo da mala, reservado para ocasiões especiais e essa ocasião era hoje. Saímos em direção ao bar, eu com meu casaco fingindo que era um paletó e o cortejo das 4 madames de pretinho básico. Fiquei desconfiado que parecia que íamos para um velório quando uma senhorinha italiana, toda vestida de negro, fez o sinal da cruz ao passar por nós.
Chegamos no Harry’s Bar, que, como já disse, fica próximo à Praça de São Marcos e ao nosso hotel. O porteiro era o mesmo. Pareceu agora aprovar nossos trajes e nos pediu para acompanhá-lo. E fomos em comboio atrás do italiano. Passamos pelo balcão do bar, passamos pelas mesas do bar. Epa! Para onde vamos? Passamos pela cozinha (lado de fora), passamos pelos banheiros (suas portas), subimos uma escada, e eu pensando “Este carcamano tá nos levando para o pior lugar possível, onde desovam os latinos americanos.” Mas nada comentei para não decepcionar as meninas.
A vizinhança da nossa mesa estava quase que totalmente vazia, em contraste com o bar do térreo que estava lotado. Apenas um casal nos fazia companhia. Logo decretamos que eles eram russos. Ao longo da noite tomaram 5 garrafas de vinho, sendo que cada uma custava mais que o total da nossa conta.
O Harry’s Bar tem criações próprias. Uma de suas invenções geniais é o coquetel Bellini, surgido em 1948 e outra muito conhecida é o carpaccio.
Pedimos logo o famoso Bellini para brindarmos nosso encontro. Ele mistura uma parte do purê da polpa de pêssego branco, e duas ou três partes do espumante italiano prosecco. Algumas pessoas gostam de acrescentar meia colher de chá de suco de limão.
O prosecco é um espumante elaborado no nordeste da Itália, no Vêneto e em Friuli Venezia Giulia, devendo conter, no mínimo, 85% da uva Glera (antiga prosecco) em sua composição.
O nome do Bellini homenageia o pintor homônimo. Cipriani, seu criador, amava as artes plásticas. Giovanni Bellini (1430-1516), mestre da pintura veneziana do Renascimento e um dos pioneiros na técnica da pintura a óleo, era um de seus ídolos.
Gentile Bellini (1429-1507) foi um pintor italiano, nascido em Veneza. A partir de 1474, foi o pintor e retratista oficial do Doge de Veneza.
Em seus últimos anos foi o primeiro mestre de Ticiano.
O Bellini do bar é fantástico, mas acaba em três goles, é a menor taça de espumante que já vi e custa €15.00 sem contar o servicio. Decreto que encerramos a fase dos Bellinis. Mas, mesmo sendo caro, consta que na alta temporada são vendidos mais de 600 coquetéis por dia.
Apesar de ter sido aqui no Harry’s Bar onde o carpaccio, a nossa entrada, foi criado, este foi uma decepção, totalmente inadequado ao nosso paladar. Veio de acordo com a tradição, com o molho do prato desenhado em formato de grade, com o garfo, para evocar os traços do pintor Kandinsky, que abriu caminho para a arte abstrata. Mas, este molho, era apenas uma tripa de maionese, sem tempero algum.
Só me recordo do meu prato, um ossobuco com risoto de açafrão, que estava ótimo.
A origem de algumas receitas é meio que no susto, e a história do carpaccio também é assim. Em 1950, a condessa Amália Nani Moncenigo pediu a seu velho amigo Giuseppe Cipriani, que lhe preparasse um prato com carne, mas não podia ser cozida, frita, assada ou passar por qualquer outro processo e cocção. Ou seja, tinha de ser crua, por ser rica em ferro. Era uma recomendação médica para curá-la de anemia.
Na cozinha foram cortadas finas lâminas de carne crua, que arranjadas num prato, e com um molho por cima se serviu.
Consta que à primeira garfada, a condessa exclamou: “Que maravilha! Como é o nome deste prato?” Na pressa ninguém havia pensado nisso, porém, olhando para a cor da carne crua, Giuseppe Cipriani se recordou da exposição que acontecia em Veneza do pintor renascentista Vittore Carpaccio, conhecido por usar em suas telas vibrantes tons de vermelho. “O nome do prato, Sra. Condessa, é carpaccio.”
No Brasil a receita foi introduzida na década de 70, em São Paulo, pelo restaurante “Massimo”.
Mas o Harry’s Bar foi lotando, e com celebridades hollywoodianas. Na mesa ao lado estava o ator de CSI Las Vegas e de Matrix, Lawrence Fishburne. Quando ele entrou Madame N. exclamou empolgada: Gente! Olha o Martinho da Vila!
Notei que ele pediu um ovo frito com trufas brancas. Aí cometi aquele momento “pobre se expondo” e corri ao cardápio para ver o preço: €80,00. Pensei: A galinha ia ficar com um orgulho deste ovo!
O vinho branco da casa Cipriani é alguma coisa. É alguma coisa muito sem gracinha, sem aromas e com pouca acidez.
Na outra mesa está Colin Firth que ganhou o Oscar com seu papel no filme Discurso do Rei. As meninas ficam um pouco mais empolgadas do que eu gostaria. Madame L., discretamente, tenta fotografá-lo com seu celular. O garçom, mais discreto ainda, ninguém viu o cara chegando, lhe informa que ali isto é um caso de polícia. – Que é isso? Estou apenas vendo as horas.
Vinho branco antes, prosecco durante e Vin Santo depois. O garçom piadista disse que podemos beber à vontade porque não precisaremos dirigir na cidade.
Olha só, o Owen Wilson, aquele ator louro do nariz torto, está sem mesa. Vai ficar em pé esperando porque agora nós não vamos embora tão cedo.
A companheira do meu chapa Lawrencinho, a esta altura já tínhamos trocado adeusinhos, é alta, linda, de turbante e turbinada, totalmente chique, sem qualquer ironia aqui, pediu, com a maior classe, para embrulhar o restante do seu hambúrguer. Madame N. decreta, mais uma jarra de prosecco. Afinal ainda vai levar uns dois meses para a conta cair na fatura do cartão, e ninguém merece esperar a conta a seco. Passando a régua foram uns €500.00 para um grupo de cinco.
Como falei o prosecco era de jarra, coisa de italianos. Fiquei achando que era o mesmo vinho branco de antes que colocaram na máquina de refrigerante para pegar um gás.
Após esta nossa noite de Festival de Cinema de Veneza, que também estava acontecendo na cidade (somos antenados), nosso tarde tinha sido na Bienal, fomos flanar na Praça de São Marcos, indo para a frente das orquestras curtir as músicas. Estas orquestras são na verdade grupos musicais que sempre contam com no mínimo piano, acordeom, violino e contrabaixo.
Embalado pelo som, pela noite e pelos Bellini resolvemos dançar em plena praça. Tomei Madame E. nos braços e saímos bailando como Ginger e Fred, como Gene Kelly e Debbie Raynolds, como …. Sérgio e Eliana.
Bem, esta dança toda deu uma sede danada, agora que a gente já sabia que se vende garrafinhas de Bellini Canella (Canella é a marca) nas sorveterias aproveitamos para brindar mais uma vez esta noite tão especial.
Li em algum guia turístico, totalmente desguiado, que 24 horas são mais do que suficientes para se conhecer Veneza. Como poderia concordar com esta afirmação? Em 24 horas não há tempo de se perder por suas vielas, para subir e descer em suas incontáveis pontes que nos permitem atravessar também incontáveis canais. Em 24 horas não poderiam ser perdidos alguns preciosos minutos tirando uma soneca no vaporetto, nem sobraria tempo para, numa das praças, procurar o lado da sombra e sentar na mesa externa de um ristorante, para tomar uma tacinha de um rosé gelado (ou duas, ou ….).
Nestas únicas 24 horas como poderíamos, por diversas vezes, parar para estudar o mapa atrás da melhor comida, daquela loja ou daquele monumento. Não seria possível nos determos em nosso caminho diante de cada vitrine que nos deslumbrava ou entrar em cada loja que nos seduzia, e foram tantas.
Em 24 horas não seria possível entornar mais um Bellini Canella no gargalo, comer, ao lado do hotel, outra brusqueta recheada de cogumelos. Voltar em Murano só para comprar dois vasos de presente para as filhas casadas. Ir de novo na Ponte Rialto em procura de uma loja. Sentar, pela segunda vez no mesmo dia, numa mesa de piazza, para uma taça de vinho branco, agora sim, apenas uma taça. Até que findando este último dia, sentado na calçada, na Praça de San Marcos, escutar um tango. Foram 4 vezes 24 horas, pareceu pouco, apenas 24 horas não seriam nada.
2 thoughts on “Um bellini em Veneza”
Artigo maravilhoso! E, para seu conhecimento, fui a Roma e não vi o Papa, fui a Paris e não subi na torre Eiffel, fui a Veneza e não fui ao Harry’s Bar. Mas adorei cada uma dessas cidades. Hahaha!
O que importa é viajar e se divertir.