Observo que algumas vezes quando as pessoas me conhecem, principalmente agora nos meus 70 anos e com os cabelos totalmente brancos, que tem quem imagine que eu nunca fui criança ou adolescente, que não tive uma fase de rock ou que não tenha realizado algumas coisas mais intensas e proibidonas. Parecem possuir a convicção que já cheguei no mundo assim pronto, deste meu jeitão. Atenção netos: o vovô sempre foi muito careta.
Tenho uma memória afetiva sobre algumas bebidas, acredito que já contei esta história algumas vezes mas vou repetir aqui para meus novos leitores. No apartamento em que eu morava quando criança, tinha um armário de fórmica azul na cozinha que foi construído pelo Seu Manolo marceneiro, era espanhol e com um forte sotaque, ele variava profissões, conforme a necessidade do freguês, eletricista, bombeiro hidráulico ou mestre de obras, se bobear também era serralheiro.
O armário tinha uma porta que meu pai transformou no seu cantinho de bar. Já viram que não eram tantas garrafas assim. Ele gostava mesmo era de cerveja. De vez em quando de um uísque. Mas tinha uma certa variedade de bebidas.
Criança, curioso, eu abria aquela porta e ficava admirando os rótulos das garrafas. Não bebia escondido. Mas foi atrás desta porta, nos anos 60 do século passado, que se deu meu primeiro contato com o vinho.
Me recordo de 3 garrafas de vinho. Todos portugueses. O Mateus Rosé, um outro que tinha no rótulo um gato e o terceiro que tinha um caranguejo. Eram poucos os vinhos que chegavam no Brasil.
A garrafa que mais me chamava a atenção não era de vinho, mas sim do Fernet, um bitter, que meu pai sempre incluía nas misturas que preparava à guisa de coquetéis. Não entendia porque ele usava o Fernet se depois ficava comentando o quanto ele era amargo.
Como curiosidade, o Fernet foi criado no século XIX, com mais de 40 ingredientes entre ervas e especiarias, para ser um remédio para o estômago. Diz a lenda que seu criador, o farmacêutico Bernardino Branca, usava uma barra de ferro para mexer o liquido na sua elaboração e “fer net” significa “ferro polido” no antigo dialeto lombardo.
Na minha adolescência eu não bebia, ao contrário de alguns primos. Não citarei nomes. Mas lembro de algumas experiências. Meu avô materno, Seu Chico Boa Morte, devoto que era da Nossa Senhora da Boa Morte, tomava uma dose de White Horse toda tarde, lá pelas 17h, remédio para a pressão. Uma vez me convidou para o acompanhar, e eu, já adulto nos meus 16 anos aceitei. Bebi o primeiro gole e detestei, mas não arreguei e fui até ao final do copo. Fiz um registro mental: nunca mais tomar uísque.
O mesmo aconteceu com a cerveja. Outro registro mental. Parece que todas estas primeiras vezes foram em Campos do Goytacazes-RJ, cidade da minha família e das minhas férias. Aí estava com uma namoradinha. E, inocente puro e besta, observando aqueles meus primos, resolvi seguir seus sábios exemplos, e antes de me encontrar com a menina, fiz uma pose de adulto e entrei em um boteco, no balcão mesmo pedi uma dose de cachaça. Para minha surpresa me venderam sem um momento de hesitação. Bebi, desceu queimando tanto que nem lembrei de fazer o registro mental. Passei vergonha conhecendo os amigos da namoradinha. Não me lembro direito mas acho que ela acabou ali mesmo o que ainda nem havia começado.
Tenho que confessar que estes registros mentais para nunca mais beber aquele determinado líquido a longo prazo nunca funcionaram muito bem, com a honrosa exceção do Cuba Libre, rum com Coca-Cola, tema de outra crônica. Tanto que, no verão seguinte, em um carnaval em Atafona, praia próxima de Campos, os pais e tios da nossa turma compraram uma caixa do whisky Cutty Sark e a colocaram debaixo das nossas mesas no baile no Clube.
Não foi uma boa ideia. O tio que ia tomar conta da gente foi a primeira baixa, tiveram de tirar a roleta da portaria para ele conseguir sair. E os guerreiros foram tombando. Meu irmão fez um travesseiro de serpentinas e apagou debaixo da mesa. Logo um primo o seguiu. Minha irmã, quero dizer, errei, não era ela e sim uma outra pessoa, juntamente com uma prima, passaram o baile encostadas em uma parede rindo o tempo todo. Eu estava em um beijo de carnaval e não percebi que a música tinha acabado, despertamos do devaneio no centro de uma roda de foliões que começou a nos aplaudir.
Mas o momento que mais me marcou com vinho nesta fase da minha adolescência foi em 1970, na Bodas de Ouro de meus avós maternos, Seu Chico e Dona Annah. Eles romperam a barreira da cerveja e serviram o vinho Mateus Rosé, o que não era comum na época. Muito depois, lá por 2015, hospedado na casa de uma tia, ela me pediu para olhar uns vinhos que tinha. E lá estavam duas garrafas do Mateus Rosé. Minha tia informa que são o saldo do jantar das Bodas de Ouro e pergunta se ainda devem estar bons. Imaginem, um vinho rosé com 45 anos e guardados no maleiro do armário.
Quando fui colocar na minha adega as garrafas que ganhei como recordação, pensei que alguém poderia dar uma bobeira e abrir uma delas. Encontrei uma solução genial. Escrevi etiquetas dizendo “FA
VOR NÃO BEBER” e as prendi nas garrafas. Minha inteligência foi totalmente detonada quando a terceira pessoa comentou que aquele vinho era tão especial que eu até pedia para ninguém beber. Nova etiqueta: ESTÁ ESTRAGADO! É APENAS UMA RECORDAÇÃO! Tem funcionado.
Anotação mental: não tomar vinho estragado.
2 thoughts on “Memórias Afetivas”
Caro Sérgio: vendo sua postagem na ‘Fossa Virtual’ tive a curiosidade aguçada, pois já sabia de sua imersão (bem adequado, né?) no mundo dos vinhos, e acabei de ver suas ‘memórias afetivas’. Prometo continuar a acompanhá-lo e, quem sabe, poder brindar pessoalmente à nossa saúde, qualquer dia. Um abraço,
Miguez, aqui estou imerso no vinho e nas recordações. Vamos brindar juntos logo que possível. Abraço