COMO NOSSOS PAIS

COMO NOSSOS PAIS

Publicado em Filosofia, Psicologia, Relacionamento amoroso, Sem categoria, utilidade pública

Estou com sessenta e dois anos e quem tem mais ou menos a minha idade vai concordar quando digo que essa última metade de século foi babado, revolucionária, uma novidade atrás da outra! Mas, quando eu ainda era criança, se uma moça transasse antes de se casar, as pessoas diziam que ela “havia se perdido”. Esse escândalo só era aplacado pelo casamento, que precisava acontecer rapidamente em caso de gravidez, para que a noiva pudesse entrar na igreja de branco, sem dar pinta. Muito bizarro! E isso tem só cinco décadas, o que não é muito se considerarmos como o tempo tem passado rapidamente.

Muitas das “perdidas” que engravidaram e não conseguiram se casar foram: espancadas até a morte ou bem perto disso e abortaram durante as surras; obrigadas pelos pais a abortar com médico de confiança que não se interessava em saber se era esse o desejo da gestante; obrigadas a se esconder durante a gravidez e abandonar ou entregar a criança em adoção, como se ela fosse apenas um estorvo; postas pra fora de casa com a desonra, a barriga e a roupa do corpo. Muitas se arriscaram em clínicas clandestinas de “fazedores de anjos” e terminaram mortas; muitas se mataram por não conseguirem suportar a vergonha e a vida sem o mínimo de amparo.

Naquela época, os pais também iam ao inferno e voltavam virados no capeta quando um filho queria deixar o cabelo crescer e usar as roupas da moda. Uma coisa tão boba virava uma guerra porque, sobre os cabeludos, sempre pairava a desconfiança da homossexualidade. Muitos rapazes, em nome da paz, desistiam da tendência e seguiam frustrados; muitos eram espancados e arrastados à barbearia; muitos também foram postos pra fora de casa com a revolta, a cabeleira e a roupa do corpo, tal qual acontecia com as moças “perdidas”.

Hoje, muitos rapazes e moças levam as namoradas e os namorados pra dormir em casa, porque seus pais, diferentemente dos seus avós, entendem que sexo faz parte da vida, nada tem de vergonhoso. E, se uma gravidez acontece, mesmo que surja uma série de preocupações, a família se une para ajudar os novos pai e mãe. Mas, e se o pai da criança não quer se casar? Nada de sogro e cunhados ameaçando com arma em punho! O bebezinho será o xodó de todos e a vovó não terá dificuldade em dizer para os vizinhos e amigos que se trata de uma produção independente. Coisas dos tempos modernos.

Da mesma forma, os rapazes podem usar o cabelo e as roupas que quiserem. Os pais não brigam com eles por causa dessas bobagens. E as mães ainda ajudam, cuidando deles como fazem com as filhas. Quando elas têm grana e os filhos são vaidosos, não faltam roupas de marca e cabeleireiros caros. Quando os filhos não são ligados nesses detalhes, só resta à mãe se apavorar com as roupas amassadas e as arapucas que eles criam nas cabeças, mas nada de preocupações quanto à orientação sexual do filho.

Se pararmos pra pensar como eram as coisas na nossa infância, ficamos horrorizados. Ou seja, nós, que somos pais, ficamos estarrecidos quando lembramos o que acontecia quando éramos filhos. Mesmo os que não passaram por situações difíceis como as descritas lembram dos amigos e conhecidos que tiveram suas vidas devastadas. Mas nos sentimos confortados e confortáveis porque somos pais do terceiro milênio, para sorte dos nossos filhos e filhas, criados dentro do diálogo, da compreensão, do entendimento. O tempo da dor, do sofrimento, da ignorância, ficou pra trás!

Ocorre que, e parece que foi Luís Fernando Veríssimo quem disse isso, “quando a gente pensa que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas”. Assim, de repente, os relaxados pais liberais de hoje se veem diante de outras questões como, por exemplo, filhos e filhas homossexuais ou transexuais. Aí a porca torce o rabo! Porque filhas fazendo sexo antes do casamento, tudo bem! Filhos com cabelos enormes e roupas estranhas, também tudo bem! Agora, essas novidades já são demais, ultrapassam qualquer modernidade! Não dá nem pra dialogar sobre algo assim!

E começa tudo de novo – os pais não aceitam, brigam, torturam, infernizam. Filhos e filhas se encolhem; submetem-se a tratamentos como se fossem doentes; são arrastados para casas de oração como se estivessem possuídos; escondem-se num “armário” e passam a trilhar uma vida de infelicidade. Ou se revoltam e são postos pra fora de casa, tal qual acontecia com as moças “perdidas” e com os rapazes cabeludos da nossa infância! Será que o tempo da dor, do sofrimento, da ignorância, realmente ficou pra trás?

Se você conversar com esses pais, eles vão argumentar que essas coisas são modismos, vão contra a natureza e, portanto, são inaceitáveis. Mas o que eles diriam se soubessem que o comportamento homossexual, por exemplo, é quase universal no reino animal? Há muito tempo os pesquisadores já sabem e estudam o que hoje não mais podemos chamar de fenômeno. Até os leões, os reis da selva, que tanto simbolizam força, masculinidade, mantêm relações homossexuais, não se limitam ao sexo instintivo apenas para a reprodução que garante a perpetuação da espécie e a transmissão genética.

E se esses pais descobrissem que, desde que o mundo é mundo, existem os homossexuais, os bissexuais, os pansexuais e por aí afora? Na Grécia antiga, as mulheres eram consideradas física, emocional e intelectualmente inferiores. Assim, os homens se relacionavam sexualmente com outros homens, parceiros à sua altura, para satisfazer seus desejos, e se relacionavam sexualmente com as mulheres para terem filhos. Nada disso é invenção dos tempos modernos, de algum partido político interessado em se perpetuar no poder ou de um canal de TV. E essa galera que teima em dizer “No meu tempo não havia nada disso” está tentando tapar o sol com uma peneira.

A diferença é que as pessoas eram totalmente reprimidas e muitas transformavam seus desejos em segredo que levavam para o túmulo; muitas viviam vidas duplas; muitas se matavam por se sentirem totalmente inadequadas. Hoje, cada vez mais, acontecem as chamadas “saídas de armário”, que exigem força e coragem leoninas dentro e fora de casa, porque vivemos em um mundo preconceituoso que usa, sem o menor pudor, a violência como arma para tentar controlar corpos e garantir a “moralidade”.

Há alguns anos, uma pessoa me disse que a homossexualidade não é natural porque coloca em risco a perpetuação da nossa espécie. Sinceramente, a espécie humana faz coisas tão tenebrosas, até com seus próprios filhotes, que me deixa na dúvida se merecemos mesmo ser perpetuados. Se os humanos não mudarem rapidamente ou se não forem extintos logo, tenho pena deste planeta e das demais espécies.

Porque antinatural é destruir as florestas, poluir o ar e a água sem os quais nem os machos heterossexuais convictos conseguirão sobreviver. Antinatural é uma mãe deixar de socorrer um filho que está sendo espancado pelo padrasto; é matar um filho pra não precisar pagar pensão; é tramar o assassinato dos pais pra colocar a mão na herança. Antinatural é maltratar um animal; é a caça por esporte; é a farra do boi. Antinatural é desviar dinheiro da Saúde, deixando milhares sem o mínimo de assistência; é desviar dinheiro da Educação, negando às pessoas a verdadeira liberdade.

No último dia 3, o auxiliar de enfermagem brasileiro Samuel Muñiz, de 24 anos, foi espancado até a morte na Espanha por ser homossexual. Infelizmente, as ruas estão cheias de ódio e crimes hediondos como esse são cada vez mais comuns. Mas as pessoas que circulam pelas ruas, inclusive as que parecem ter acabado de desembarcar do reino das trevas, aprenderam a odiar assim ainda dentro de casa, no chamado “seio da família”, a mesma família que muitos enchem a boca pra dizer que é a celula mater, a base, o pilar dessa sociedade que tem nos deixado horrorizados, tamanha a ignorância acerca das Leis que regem o Universo.

O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Segundo relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), foram 80 pessoas trans e travestis mortas só no primeiro semestre de 2021. E esses psicopatas que se intitulam guardiões da moral e dos bons costumes não vieram de outros planetas, todos saíram de uma celula mater brasileira tradicional. Muitas ensinaram os filhos a odiar, a agredir, a matar. Muitas outras não ensinaram a matar, mas a subestimar, a desprezar, a destratar, a maltratar com piadinhas e gracejos que parecem inocentes, mas não são. E quando esses filhos saem às ruas, quando libertam suas fúrias, deixam em nós esse sentimento de que o ser humano é um caso perdido.

Aquele tipo de família que todos conhecemos – pai e mãe heterossexuais criando seus filhos – não é mais o único. Há famílias em que os filhos têm só o pai ou só a mãe; dois pais ou duas mães; um pai e mais de uma mãe; uma mãe e mais de um pai. E qual seria o tipo ideal? Pra mim é aquele em que os filhos sejam recebidos e criados com amor, aprendam a respeitar todas as criaturas humanas ou não e tornem-se pessoas que sirvam de exemplo para os criados ainda na ignorância do preconceito, da falta de respeito à diversidade.

Queremos um mundo sem ódio, livre da intolerância que leva a esses crimes bárbaros? Então construamos famílias sem ódio, tolerantes, que respeitem as individualidades. Cabe aos pais empregar todos os seus esforços para criar pessoas de bem, empáticas, honestas, que estejam no mundo não apenas para defender o seu, mas para fazer algo pela Humanidade, pelo nosso planeta. Porque, como disse Chico Xavier no poema Amorosamente, um pequeno grão de alegria e esperança dentro de cada um é capaz de mudar e transformar qualquer coisa, pois a vida é construída nos sonhos e concretizada no amor!

Acredito que os filhos de hoje serão pais melhores do que estamos sendo no que diz respeito a essas questões. Mas, de qualquer forma, deixo aqui o meu recado para que, quando a coisa ficar meio confusa, lembrem do seguinte trecho da maravilhosa música COMO NOSSOS PAIS, do grande Belchior:

“Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito
Tudo, tudo, tudo, tudo que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais!

 

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23 thoughts on “COMO NOSSOS PAIS

  1. Remetido via WhatsApp por Hilta Figueiredo: Amiga, que texto! Você é demais, viu. Sempre com elegância, mexeu em várias feridas expostas nessa nossa sociedade podre. Excelente leitura e a reflexão é inevitável. Bola dentro💜

  2. Como sempre, amei! Você conseguiu expor os preconceitos que ainda são fortes na sociedade, em pleno século XXI, de maneira franca e direta, sem mimimi!

    1. Oi, Adriana! Mimimi não é comigo. Penso que um texto assim pode ajudar a salvar vidas e, quando se trata de salvar vidas, a gente precisa ser direto, claro, objetivo.

    1. Oi, Denise. Infelizmente verdadeiro no que diz respeito a como eram e como continuam sendo tratadas certas questões. Mas acredito que ele levará muita gente à reflexão. A verdade tem esse poder.

  3. Remetido via WhatsApp por Elvino: Seu texto abrange tantas inferioridades nossas, que vão ficando lentamente para traz, mas ainda há muito o que fazer nestes momentos de mudanças! Gostei! Principalmente pela abrangência e a boa escrita, não deixando de lado, o principal que é colocacão de assuntos tão importantes para nossa transformacão! Meus parabéns vc que para mim é uma simpatia de pessoa e muito carismática!

    1. Você está certo, Elvino. Há muito a fazer. Realmente nossas inferioridades vão ficando lentamente para trás, só que num mundo que muda muito rapidamente. Como disse Lulu Santos, “Assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade”.

  4. Remetido via WhatsApp por Frazão: Oi Maraci, Obrigado por enviar a matéria do seu blog. Muito pertinente para os dias atuais tão diversos. Vou compartilhar!

  5. O texto é de grande valia, porque mostra de forma real o que aconteceu e o que está acontecendo neste momento. Caso fosse possível definir este belíssimo texto em um palavra, seria empatia, porque acredito que se de alguma forma nos colocarmos no lugar da pessoa que sofre a agressão/preconceito saberíamos o tamanho da dor que é não poder expressar nossa forma de amar, de não ser quem somos só por causa do medo e da crueldade de outrem. Parabéns, sábias palavra Maraci 😉

    1. É isso o que falta no mundo, Erice, EMPATIA. Acredito que, se houvesse empatia no mundo, pelo menos 90% dos crimes bárbaros não teriam acontecido.

  6. Remetido via WhatsApp por Nelson Teixeira: Excelente abordagem! Em qualquer e em todas as épocas teremos questões a serem debatidas e, com muito esforço, superadas. Nossos paradigmas morais e comportamentais não mudaram. Pelo menos, ao longo da minha curta existência de 62 anos, não percebi isso. Já o grau de tolerância é maior, é verdade, mas, geralmente, em relação apenas aos “filhos dos outros”. Acredito, por fim, que o maior preconceito e a maior discriminação existem dentro de nós próprios, os “diferentes”. Autoaceitação é o primeiro passo. Acreditar que as pessoas que verdadeiramente importam e gostam de você vão conviver muito bem com suas características de gênero ou orientação sexual. Terceiro passo é não tentar impor sua forma de ser a ninguém. Faça-se “apenas” respeitar.

  7. Remetido via WhatsApp por Rosângela Gadioli: Adorei Mara. Vc realmente sabe abordar questões complexas de forma transparente. Vou te acompanhar!!!! Quero me atualizar e nada como seus textos para nos propiciar isso. 👍🥰

  8. Postado no FB por Rosana Melo: Concordo com a maior parte do texto. No sábado, discutíamos em nosso encontro virtual, até que ponto alguma “repressão” que tenhamos sofrido em nossa adolescência, forjou positivamente nosso caráter com relação às noções de ética ou porque tantos jovens estariam perdidos(sem rumo) e desejando obter o “sucesso” por meios mais “rápidos” aplicando golpes na Internet e com objetivos de vida materialistas demais. Será que em outra ponta, para não repetir a educação dos pais , os pais da nossa geração teriam se tornado “permissivos” (essa palavra é pesada, e carregada de preconceito, não gosto dela, mas foi a primeira que pensei para me fazer entender)? Em outra vertente, há o ressurgimento dos defensores da moral e dos bons costumes, inclusive muitos jovens que não conseguem conviver com as diferenças sejam sexuais, religiosas ou políticas, quase uma volta a Idade Média. Espero sim, um mundo melhor, com seres humanos melhores.

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