Cosette Castro
Brasília – Na semana passada a revista Tpm publicou uma importante matéria sobre cuidado familiar com relatos de algumas mulheres, seus desafios e aprendizagens.
A iniciativa da Revista é importante para dar visibilidade ao trabalho gratuito realizado diariamente por milhões de mulheres que cuidam de familiares com 60 anos ou mais. Tanto no Brasil como no mundo. No entanto, o título da matéria me parece equivocado (Veja aqui).
Nesse momento do texto convido você a respirar fundo três vezes. E seguir lendo o Blog. Este é um convite para pensar a forma como, muitas vezes, o cuidado familiar de pessoas idosas é compreendido no Brasil.
Este texto não diz respeito a você que cuida com amor e tenta diariamente melhorar a qualidade de vida dos seus pais. Diz respeito a algo mais amplo, às vezes naturalizado dentro de nós. A noção de cuidado como um lugar da maternidade.
Respire mais fundo.
Há quem, por amor, acredite que cuidado familiar é se tornar “mãe” dos pais. Sem querer, esse imaginário reforça preconceitos sobre as limitações durante o envelhecimento. Principalmente entre as pessoas que perdem a memória. Como é o caso das demências, onde o tipo mais comum o Alzheimer.
E também causa apagamentos.
Vamos lá. Siga respirando fundo. Esta é uma reflexão necessária.
Mesmo com demência e passando por um processo de perda da memória, essas pessoas tiveram uma vida antes dos seus filhos e filhas nascerem. E depois deles. Elas têm uma história, mesmo que, no caso das demências, elas não lembrem mais de si mesmas e dos familiares próximos, inclusive de quem cuida.
Essas pessoas representam nossa ancestralidade e nossa história transgeracional. Um dia elas foram cuidadoras (independente da qualidade do cuidado familiar que conseguiram oferecer).
No caso das mães, o cuidado vai além. Elas nos carregaram no útero por nove meses.
Durante a demência ou outras doenças sem cura, somos convocadas, física e emocionalmente, a sair de um papel único: o de filhas. Um lugar onde, na maioria dos casos, recebemos cuidado.
Trata-se de um deslocamento importante. Muitas vezes difícil. Além de filhas, passamos a ser cuidadoras familiares.
No entanto, algumas pessoas assumem um papel imaginário de “mãe da mãe”. Ou mãe do pai, da avó. Um papel que vai além do cuidado familiar. É um lugar emocionalmente pesado, pois apaga o papel da filha (ou seja, a si mesma) e da pessoa idosa ao mesmo tempo.
Siga respirando. E, se possível, leia até o final
Nesse caso, há um duplo apagamento. Este pode ser um lugar muito doloroso e frustante, porque impossível. Ainda que seja uma tentativa amorosa de cuidar.
Neste ponto vale a pena refletir sobre o que consideramos “ser mãe”, uma função que vai muito além do “fazer”. Provisão de comida, administração de remédios, ida a especialistas, higienização, inclusive de partes íntimas. Compras e administração de contas bancárias. Envolve “mandar” na outra pessoa, tomando decisões por ela. Quase como se lidasse com uma criança. Quase.
A maternidade vai muito além do fazer. Envolve afeto, transmissão de valores, envolve perspectiva de vida, sonhos compartilhados e projetos de futuro.
É diferente da ideia de envelhecimento que muita gente (ainda) tem, principalmente quando envolve doenças progressivas e sem cura.
Neste ponto convido a repensar a ideia de cuidado como sendo algo “inerente” ao sexo feminino.
Cuidado familiar é um trabalho não remunerado que deveria ser compartilhado entre homens e mulheres como co-responsabilidade.
No entanto, a maioria dos homens (ainda) não foram ensinados a cuidar. E passam a vida apenas recebendo cuidados, independente da idade. (Essa afirmação já daria espaço para outro Blog)
Foi preciso a aprovação da Lei 15.609 em dezembro de 2024 que estabelece a Política Nacional de Cuidados. A nova lei definiu cuidado familiar como trabalho. E estabeleceu em lei que o cuidado é uma co-responsabilidade familiar, da sociedade e também do Estado.
Diferente do que fomos ensinadas e do que muitas pessoas ainda acreditam, cuidado não se restringe ao trabalho gratuito realizado pelas mulheres.
Quando o Plano de Ação para implementar a Política Nacional de Cuidados for anunciado, vão ser necessárias muitas campanhas públicas para ampliar a noção de cuidado familiar para além do cuidado feminino, do “materno”.
Na construção de uma Sociedade do Cuidado, todas e todos somos aprendizes.
Sobre o Cuidado da Pessoa com Demência
Quando a pessoa idosa com demência chama a cuidadora familiar de “mãe” não está se referindo a filha que se tornou cuidadora familiar do presente.
Ela está se referindo à mãe do passado, já que a memória recente vem sendo perdida. Vale lembrar que só passamos a fazer parte da história de nossas mães em geral depois dos 20, 25 anos. Ela tem toda uma vida antes de nós, durante nossa infância, adolescência e também na vida adulta.
Sempre seremos filhas, mesmo que hoje também sejamos cuidadoras familiares.
PS: Ajude a cuidar da Floresta Nacional (Flona) e do Parque Nacional de Brasília (PNB). Eles são fundamentais para a conservação do Cerrado. Assine a petição contra a a privatização da Flona e do PNB (AQUI).