Cosette Castro
Brasília – Às vezes, quando ficamos sem palavras frente a uma situação ou memória dolorosa é a arte que vem em nosso auxílio e logra tocar a alma. Muitas obras emocionam ao mostrar, através da ficção, uma realidade nem sempre (re)conhecida.
Esse “toque na alma” pode acontecer através de diferentes manifestações artísticas, como um filme. Em algumas situações, as obras conseguem apontar o indizível. O que é impossível expressar, particularmente quando se trata de traumas ou outros eventos dolorosos e marcantes.
No caso do filme “Ainda Estou Aqui”, a obra vai descortinando o que é impossível dizer em palavras. Mas não pense que é fácil assistir o filme, embora seja urgente e necessário para resgatar a memória e a história recente do Brasil.
Apesar da praia, da casa confortável e de apresentar uma família feliz, não demora para aparecer o contraste. Logo chega o medo, a tensão crescente e uma opressão digna dos filmes de suspense. Seria mais fácil se fosse apenas uma ficção, mas não é.
Baseado no desaparecimento do ex-deputado e jornalista Rubens Paiva em 1971, o filme conta a história de Eunice Paiva, mãe solo de cinco filhos. Ela resistiu à perseguição, prisões, sequestros, censura e vigilância na tentativa de saber o que ocorreu com seu marido.
Uma resiliência que durou 47 anos com direito a fotos sorridentes nos jornais e revistas. Como se enviassem uma mensagem para seus algozes: “Ainda Estamos Aqui”, apesar de vocês.
A história de Rubens Paiva ganhou âmbito internacional nos anos 70 do século XX. E ainda hoje simboliza os 434 desaparecidos políticos oficiais no país. Também aponta para as perseguições, prisões e torturas que atingiram milhares de famílias nas cidades, áreas rurais e comunidades indígenas durante a ditadura civil militar (1964 -1985).
Durante o filme há uma tensão crescente, um medo que corre pelos poros, entrecortado por silêncios cada vez maiores. Há um mal estar que se instala ao lado da poltrona e por toda a sala escura.
Há um silêncio individual e coletivo que se inscreve na ordem do indizível, do que é proibido de falar, do que não pode ser dito. No caso de Eunice, nem para si nem para os demais. Sejam crianças ou adultos.
E é o indizível que toma conta da sala de cinema.
Após o filme, ainda há pessoas sem palavras, atravessadas por um pesado silêncio. Mas não na dimensão e magnitude que Eunice Paiva deu ao silêncio.
Para não sucumbir à dor, ela criou uma narrativa permeada de silêncios e não ditos para os filhos. Engoliu a raiva, o medo e o desespero para sobreviver e proteger os filhos, mas também a si mesma. Nem sempre é possível pronunciar o indizível mas, ainda assim, é preciso seguir adiante.
Na sua forma contida de ser, a Eunice Paiva criada pelo filho/escritor Marcelo Rubens Paiva e interpretada por Fernanda Torres, não torna públicas suas perguntas ou questionamentos íntimos.
Entretanto, ainda agora é quase possível escutá-la susurrando: “Como aceitar a dor e o medo de que não haja mais volta? Como aceitar que não há, nem nunca houve, certezas? Que não há sequer o direito ao corpo? Ou se perguntar: Quando será o dia do ponto final?
Ela também poderia gritar internamente: “Onde guardar todo esse amor até então compartilhado? Os sonhos e a vida de até um mês atrás? Onde esconder o medo, o desespero e as incertezas que passaram a tomar conta do cotidiano?”
Eunice Paiva nunca desistiu nem aceitou os segredos e mentiras oficiais. E, paralelo aos quase 50 anos de busca pelo marido desaparecido, ela se tornou defensora dos povos originários sendo reconhecida internacionalmente.
Uma Eunice Paiva Envelhecida
O filme também mostra uma Eunice envelhecida que, após passar por tensões, perseguições, abusos psicológicos, enrijecimentos e silêncios, desenvolveu Alzheimer. A mais conhecida das demências apaga a memória individual, assim como a ditadura brasileira apagou boa parte da memória coletiva.
Logo Eunice Paiva que passou a vida como guardiã da memória do marido. Ela que esperou de 1971 a 1996 para receber o atestado de óbito, mas nunca seu corpo. Um luto incompleto, sempre em compasso de espera, sem direito a chorar ou relaxar completamente nem mesmo ao envelhecer.
Em uma história de família em mais de uma camada, temos a Eunice Paiva internpretada por Fernanda Montenegro aos 95 anos. O indizível da envelhecida Eunice ainda aparece fugazmente nos seus olhos. Mesmo sem conseguir mais falar, ela representa todas as pessoas que foram caladas pela demência.
PS: Em 2024, a Comissão Nacional da Verdade decidiu reabrir o caso Rubens Paiva e investigar seu assassinato.
PS 2: A semana foi marcada por uma grande vitória com a aprovação do PL da Política Nacional de Cuidados que agora segue para o Senado. Esse e outros temas serão comentados no próximo Blog.