A Solidão Pode Ser Fatal

Publicado em Cuidado e Autocuidado

Ana Castro & Cosette Castro

Brasília – Como é possível que uma pessoa idosa morra dentro do apartamento e permaneça quase três anos sem que ninguém descubra?

A notícia, publicada no jornal The Gardian e em versão portuguesa neste fim de semana, repercutiu no mundo inteiro. É escandalosa a sequência de negligências que Sheila Seleoane sofreu.

Embora ela tenha falecido por volta de agosto de 2019, deixando de pagar aluguel desde aquele mês, ninguém estranhou. Nem as reclamações de vizinhos do mau cheiro que exalava do apartamento surtiram efeito.

A Peabody Trust, associação habitacional que age como gestora do imóvel, ignorou Sheila. E ignorou seus vizinhos. Por mais de mil dias. Foi preciso uma denúncia recente sobre danos em uma porta da varanda que ficou batendo após uma tempestade para que a polícia finalmente fosse procurar a ex-secretária médica, que faleceu aos 61 anos.

A história de solidão e morte de Sheila não é uma exceção.

Tem acontecido na Espanha, em Portugal e Inglaterra, países com alto índice de envelhecimento populacional e longevidade. Aumentam os casos de pessoas idosas morando sozinhas. Aumentam os casos de solidão e desamparo afetivo.

Sheila Seleoane também morava só. Sem família. Apenas uma irmã longuínqua na África do Sul. Não namorava. Nem tinha amigos ou amigas. Não se relacionava com seus vizinhos. Ou seja, não tinha rede de apoio e cuidado. Vivia em solidão.

A empresa gestora dos apartamentos informou que entre 2019 e 2022 enviou 89 tentativas de contato com Sheila via e-mail, WhatsApp, telefonemas e cartas.

No entanto, nenhum dos funcionários estranhou a falta de resposta. Não deram continuidade às reiteradas denúncias dos vizinhos. Tampouco bateram na porta de Sheila para descobrir o que estava acontecendo. Se tivessem ido ao edifício, teriam descoberto a caixa de correio abarrotada de correspondências.

Esse descaso, essa negligência foi uma violência institucional, agravada pela descoberta de que a polícia informou que esteve lá, mas não notou nada estranho. Nem o cheiro da morte.

Apesar do Brasil ainda não chegar a esse nível de mortandade solitária entre as pessoas idosas, existem outros tipos de violência contra os 60+.

Há um governo que congelou o orçamento da saúde pública em um país onde 71% da população dependem do SUS.

O governo federal freou a liberação de novas aposentadorias no país. E tem gente esperando resposta sobre o benefício a que tem direito há um ou dois anos.

O Estatuto do Idoso aprovado em 1994 ainda tem sua implementação completa pendente. Isso diminui bastante a qualidade de vida das pessoas idosas.

A maior parte dos estados e cidades brasileiras não conhecem onde vivem as pessoas idosas nem como se cuidam. Ignoram até se elas precisam de acompanhamento e ajuda especial.

Bem diferente de Barcelona (Espanha) que já no final dos anos 90 do século XX  possuía um plano estratégico de cuidado e acompanhamento para pessoas com 60 anos ou mais.

A prefeitura barcelonesa contratou estudantes universitários em um programa de “cuidador social”. Além do atendimento às pessoas idosas, o projeto estimulava a relação intergeracional e garantia uma renda aos estudantes. Os jovens visitavam semanalmente pessoas idosas que moravam sozinhas, algumas com mais de 100 anos.

Eles observavam diversos aspectos: se a pessoa tinha medicamentos e se estava tomando. Se havia alimentos suficientes. A organização da casa e a higiene pessoal. O projeto também incentivava a leitura por meio de um sistema de entrega feito pelas bibliotecas públicas nos bairros.

O projeto garantia que as pessoas idosas tivessem companhia e se relacionassem com pessoas mais jovens. Ao mesmo tempo estimulava a empatia e a solidariedade dos jovens em relação às pessoas mais velhas. Um projeto de cuidado e respeito em relação à população idosa que também estimulava uma cultura do cuidado entre diferentes gerações.

No Brasil, um dos poucos programas que existem é o Programa Acompanhante de Idosos (PAI), realizado na cidade de São Paulo desde 2008. O projeto atende homens e mulheres em situação de fragilidade e alta vulnerabilidade social acima de 60 anos e conta com equipe multidisciplinar.

No entanto, até hoje não existe projeto nacional de acolhimento e cuidado à população idosa mesmo que este grupo siga crescendo. Nem estímulo a que as famílias não negligenciem ou abandonem familiares mais velhos. Até quando o Brasil seguirá de costas para o envelhecimento populacional?

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