O Dia do Dar-se Conta

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Ana Castro, Cosette Castro & Convidado

Brasília – No mês de alerta sobre suicídio, conhecido como setembro amarelo, é importante levar em conta a saúde mental das cuidadoras, que sofrem sobrecarga física e psíquica cotidiana com as atividades de cuidado.

Antes de apresentar o nosso convidado no projeto Histórias da Memória, recordamos que  o acompanhamento terapêutico e os grupos de apoio são  espaços de saúde mental que ajudam a reduzir o sofrimento e a dor de perder pouco a pouco um parente querido. Por isso, em 2021 em setembro, estamos realizando a campanha “Alzheimer, falar diminui a dor”.

O convidado de hoje, Adriano Roza, é artista e atuante ativista do Coletivo Filhas da Mãe. Ele conta sobre o processo de compreensão e aceitação da doença de sua mãe.

Adriano Roza – “Existem processos rápidos, que de tão rápidos, transformam nossas vidas num piscar de olhos. No caso do Alzheimer, talvez não exista um único evento, mas uma série deles.

Os processos sobre os quais escrevo não são do tipo rápidos. Ou melhor, o que os diferenciam não são tanto a velocidade em que se deram, mas a minha dificuldade em atribuir marcos de início e fim. Se trata do processo de demência que acometeu minha mãe e do meu processo de reconhecimento e aceitação daquela  que outrora fora a mulher mais importante da minha vida.

Eu sabia por alto o que tinha acontecido com meu avô. Segundo minha mãe, um dia, ele se levantou da cama e tentando colocar o calçado, caiu e rachou a cabeça na quina de um móvel. O processo de meu avô começou com uma obra atrapalhada em casa. Ele ficou tão nervoso que  parou de falar. Foi ficando cada vez mais apático e, por fim, “demenciou”. Morreu num hospital em decorrência do ferimento na cabeça.

Com minha mãe, não houve um início, nem uma historia como a do meu do meu avô. Após saber sobre o seu processo degenerativo, tive dúvidas sobre quando havia iniciado. Será que foi com  os comportamentos inadequados e manias de 10 anos atrás? Ou com a depressão dos últimos 20 anos?

Tampouco reconheço um início no meu processo de aceitação. Mas lembro de um momento importante. E de uma lembrança triste.

Após uma noite de trabalho, eu voltava de carro para casa e no caminho ia refletindo sobre minha mãe, sobre quem ela havia sido antes e quem ela era agora.

Minha mãe não era fácil. Seu estilo não era o acolhimento exagerado da mãezona amorosíssima que está sempre lá para você com uma caneca de chocolate quente, nem tampouco aquela devoção absoluta da mãezinha que sofre com as injustiças de um mundo que não vê seu filho com seus olhos generosos.

O estilo dela  era  manter distância quando eu precisava ajuda e vigilância arrochada. Eu tinha certeza de que ela fazia isso só para me atazanar! Mas quando  menos esperava,  surgia como um anjo, com um colo tão gostoso que, enquanto eu me aconchegava, me dobrava e derretia no meio dos seus cafunés, esquecia das  brigas bobas.

Enquanto pensava sobre as incoerências de ontem e de hoje de minha mãe, senti meu corpo gelar com a constatação de que eu nunca mais teria aquilo. Aquilo que nem sabia o que era, mas que chamava de amor de mãe.

Nunca mais um arranca-rabo porque mexeu nas minhas coisas. Nunca mais uma discussão porque eu não havia varrido a sala. Nunca mais a indelicadeza de nem ao menos fingir que gostou do presente (e nunca gostava de nada!). Nunca mais aquele colinho súbito, aquele abraço inesperadamente mais longo que o normal, que dava a certeza de que era amado por minha mãe.

Gelei porque me dei conta de que a doença da minha mãe não tinha volta. Eu chorei porque queria minha mãe de volta. E queria pra já, como um menino mimado.

Ainda no carro, decidi que devolveria todo amor que ela havia me dado sem esperar nada em troca. Eu que ainda me queixava de quase nunca receber um sorriso, a partir de então, fiquei tranquilo com a crescente apatia de minha mãe. O menino mimado havia crescido.

Essa lembrança poderia marcar o término de meu processo de aceitação e entendimento. Mas eu ainda não consigo atribuir um início nem um fim.

Outro dia, fui fazer uma visita a minha mãe. Ela estava deitada no sofá, como tem ficado ultimamente. Quase imóvel, mal falou comigo e não tirou os olhos da televisão.

Resignado, sentei no chão, ao pé do sofá para estar em sua companhia. Quando eu menos esperava,  senti seus dedos se entrelaçarem nos meus cabelos em movimentos macios, um pouco desengonçados e tremidos, mas espontâneos. Eu fechei os olhos. Senti meu corpo gelar novamente. E sorri, satisfeito por  estar errado.

Meu processo ainda não havia terminado. Em algum lugar, minha mãe ainda estava lá”.

Campanha Setembro Roxo. Alzheimer, quebre o silêncio. Falar diminui a dor. #setembroroxo #alzheimerquebreosilencio #alzheimerfalardiminuiador

Cosette Castro

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