Ana Castro & Cosette Castro
Brasília – Este texto está dividido em duas partes. Começa com desejos individuais até chegar no coletivo, levando em conta o contexto deste Brasil pandêmico.
Parte I Reflexões de uma ex-cuidadora
“Se eu ainda fosse cuidadora da minha mãe, neste 08 de Março, me daria um ou muitos presentes do maior luxo que conheço: tempo!
Perderia a vergonha de pedir ajuda. E sem ter que resolver tudo sozinha, iria convocar a família para segurar as pontas por um tempinho. Para tomar um café da manhã demorado, caprichado. Mesa com flores e direito a louça de festa.
Para ler um livro ou a revista que mais gosto. Ia ouvir música bem alta, capaz de tirar qualquer inibição de dançar.
Teria tempo para ligar a uma amiga com direito a falar abobrinhas (ou a sério) até a bateria cair. E talvez tirar um soninho depois do almoço.
Na minha lista de presentes caberia o autocuidado que abandonei sem perceber, por falta de tempo, por responsabilidade demais ou por não ter com quem dividir o cuidado de familiares”.
Parte II Depois de ter um tempo para cuidar de mim, ficaria mais fácil pensar: será que nasci para cuidar?
Muita gente (ainda) diz por aí que as mulheres nascem para cuidar ou que as mulheres “cuidam muito melhor que os homens”.
Cada vez que uma frase dessas é pronunciada e multiplicada aos quatro ventos, reforçamos no imaginário popular a naturalização do cuidado como “algo feminino”.
Cada vez que dizemos (ou escrevemos) que uma mulher cuida melhor que um homem, apagamos da memória que – em geral – meninos não são educados para ter a mesma responsabilidade dentro de casa como ocorre com as meninas.
Ao congelar os papéis, cortamos as possibilidades de escolha e amadurecimento de meninas e meninos.
Não é por acaso que apenas as meninas recebem de presente bonecas, fogões, casinhas, carrinhos de supermercado ou fantasias de princesa. Já os meninos vão para a guerra, são heróis de capa e espada, ganham carrinhos (ou carrões) e são estimulados a brigar e a disputar, sem cuidar da casa ou de bebês.
Se meninos e meninas ganhassem presentes iguais desde cedo, teríamos mais crianças aprendendo de forma lúdica a cuidar e a enfrentar o mundo lá fora.
Com isso, cortamos a possibilidade de, desde cedo, educar meninos e homens que saibam cuidar das atividades domésticas e de familiares.
Ao contrário, estimulamos (mesmo sem perceber) esses futuros homens a seguirem sendo cuidados e alimentados a vida toda. E estimulamos as futuras mulheres a cuidar desses homens e dos demais familiares.
No máximo, eles “ajudam” em casa. E a cada ajuda são estimulados e aplaudidos como se o cuidado praticado por eles fosse algo extraordinário e diferenciado. Não é.
Nem todas as famílias têm condições financeiras de terceirizar o cuidado da casa ou o cuidado de familiares, contratando outra pessoa (mulher). Não é por acaso que 82% do cuidado de familiares idosos e/ou enfermos no Brasil é realizado majoritariamente por mulheres da própria família (IBGE, 2019).
Essas mulheres muitas vezes deixam de trabalhar, estudar, realizar projetos pessoais para cuidar do núcleo familiar e também de outros familiares enfermos e/ou idosos. Mulheres ainda na adolescência, adultas e mulheres em fase de envelhecimento que neste período precisariam ser cuidadas. Mas seguem cuidando em meio aos riscos do Covid-19.
Muitas vezes, o cuidado familiar gratuito inclui responsabilizar-se por mais de uma pessoa ao mesmo tempo: crianças, marido, pessoas enfermas (inclusive ex-maridos), e/ou idosos (pais, sogros e sogras, madrinhas e padrinhos, irmãos, tios e avós). Ufa!
Uma responsabilidade cada dia mais pesada, desgastante, solitária e que gera sofrimento físico e emocional. Na maioria dos casos, não se trata de uma opção de vida. Se trata de uma falta de opção, onde as mulheres assumem a responsabilidade sobre o cuidar 24 horas ao dia. E algumas sequer tem tempo de se olhar no espelho.
Até quando cuidadoras e cuidadores familiares seguirão desprotegidos pelo Estado e pela sociedade? Está mais do que na hora de pensar o cuidado e o autocuidado como direitos humanos, como qualidade de vida. E, em sendo direito humano, com direito a políticas públicas de cuidado.
PS1: Voltando ao individual. Escolha a sua lista de presentes e autocuidado. Inclua máscara, álcool gel e vacina. O tempo passa e não volta. Mesmo que a gente não tire um tempo para se cuidar.
PS2: O 08 de março (#8M) não se resume a um dia. Neste mês estarão sendo realizadas atividades on line sobre temas como o aumento da violência doméstica e o feminicídio durante a pandemia.
6 thoughts on “Nascemos para cuidar?”
Obrigado por informações tão importantes sobre as questões ligadas a gênero e cuidado. São necessárias políticas públicas urgentes para a área! E que beneficiem, e protejam, principalmente as mulheres.
Excelente reflexão. Meninos e meninas têm o direito de brincar as mesmas brincadeiras, aprender as mesmas habilidades, os mesmos conhecimentos. Meninos e meninas cuidam, meninas e meninos jogam bola, meninas e meninos são livres.
Gratidão, Claudio. Assim poderemos criar uma sociedade mais colaborativa. Esperamos sua participação nos próximos textos.
Sim, Vitor. Precisamos urgentemente de políticas públicas de cuidado.
É muito triste que o amor se torne uma obrigação. Uma obrigação quem nem sempre é partilhada pelos demais membros da família, recaindo em apenas uma pessoa.