Da coluna Eixo Capital/Ana Maria Campos
Entrevista: Promotor de Justiça Daniel Bernoulli
“Diferentemente dos outros homicídios, em que se discute a ação do autor da facada ou do tiro, no feminicídio, a vítima é julgada a todo tempo. Perguntas como ‘por que o agressor agiu assim?’ dão lugar a ‘o que ela fez pra ele agir assim?’”.
Temos falado sobre feminicídio e a complexidade do problema. Por que, na sua avaliação, esse tipo de crime tem aumentado no DF?
Em primeiro lugar, passamos a considerar a existência da qualificadora do feminicídio, fato esse inexistente até o ano de 2015. Com isso, gradativamente, alguns crimes tratados apenas como homicídio passaram a ter esta especificidade. Além disso, a mulher tem tido acesso a mais informações de como pode – e deve – reagir à violência doméstica e isso pode estar amplificando a violência desses assassinos.
Existe impunidade?
No Distrito Federal, não há impunidade ou qualquer tipo de tolerância com o feminicídio. O índice de elucidação desse tipo de crime, desde a autoria até as circunstâncias, motivos e modo de agir é de praticamente 100%. Levados a júri, esses criminosos também não costumam ser beneficiados com diminuição de pena. São punidos com bastante rigor.
Na sua experiência nos júris, consegue avaliar o perfil de um homem que mata a mulher com quem dividiu a vida?
Traçar o perfil de um potencial feminicida seria o sonho de todos nós. Isso nos permitiria ter mais cuidado com uns e menos com outros. Não é possível infelizmente. A experiência nos mostra que esse crime se apresenta em todos os meios e classes sociais. Alguns traços, no entanto, são comuns na maioria deles: um homem egoísta, preocupado com a possibilidade de independência de sua companheira, indiferente à sua prole e sem arrependimento sincero do crime praticado.
Quais são os sinais de um homem que vai cometer um ato extremo contra a mulher?
Em geral, quando olhamos o histórico de um feminicídio, encontramos uma violência que veio crescendo até culminar na morte. Com a conscientização da mulher, de uns tempos para cá, isso vem sendo documentado por meio de boletins de ocorrência. O registro é extremamente importante, mas também angustiante, pois escancara que o Estado soube que aquilo poderia acontecer, mas não conseguiu impedir a tragédia.
Em geral, são crimes premeditados ou ocorrem no calor da discussão?
Encontramos essas duas situações. Os premeditados trazem um conteúdo de frieza que torna o crime ainda mais perverso. Agora, na outra hipótese, esse calor da discussão está longe de ser uma situação nova, uma descoberta; ao contrário, deve ser entendido como o último ato de algo que já vem sendo alimentado no imaginário daquele cidadão.
Os jurados ainda aceitam a tese de que o assassino agiu em forte emoção?
O domínio de violenta emoção logo em seguida a uma injusta provocação é uma tese ventilada pela defesa até mesmo por ser mais palatável do que, por exemplo, a legítima defesa da honra (acolhida no caso Ângela Diniz, em 1977). Mesmo assim, os jurados não costumam admiti-la. Ela retira a hediondez do crime e melhora muito o cumprimento de pena do assassino. E, como disse, o jurado tem muito pouca tolerância com esse crime e com esse criminoso.
No júri de feminicídio, a vítima é julgada também?
Diferentemente dos outros homicídios, em que se discute a ação do autor da facada ou do tiro, no feminicídio, a vítima é julgada a todo tempo. Perguntas como “por que o agressor agiu assim?” dão lugar a “o que ela fez pra ele agir assim?”. É um plenário em que se mata a mulher pela segunda vez, questionando não as ações de quem matou, mas de quem morreu. Sempre chamo a atenção dos jurados para esse detalhe. Afinal, quem está sendo julgado(a)? Isso tem muita relação com a nossa cultura que precisa ser mudada.
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A Press