Crédito: William Borgmann/Divulgação. Eliziane Gama, senadora Crédito: William Borgmann/Divulgação

Eliziane Gama: “O governo Bolsonaro vive de mentiras”

Publicado em Entrevistas

Por Ana Dubeux

Não existe marco zero quando se trata de conquistas femininas. Única mulher na bancada do Maranhão, eleita com mais de 1 milhão de votos, a senadora Eliziane Gama (Cidadania) honra o passado ao creditar os avanços da participação feminina na política a suas antecessoras, como Heloísa Helena e Marina Silva. Cada avanço é parte de um processo e de uma história. Mas não há como negar que a presença das mulheres na CPI da Covid-19, após negociações, faz diferença.

Autora do projeto de resolução que cria a liderança feminina no Senado e uma das articuladoras do acordo que garantiu a participação das mulheres na CPI, Eliziane afirma: “Estamos acrescentando, alargando, é uma luta longa. Acreditamos que a CPI realmente ganhou nova vida com a maior participação das mulheres. Na CPI, trazemos o olhar feminino da tolerância, do respeito aos outros, aos depoentes, às mulheres, sem perder a objetividade que os fatos impõem. Acho que nós, mulheres, temos mais facilidade para nos despirmos do manto da arrogância”.

Nesta entrevista ao Correio, a senadora não poupa críticas ao governo Bolsonaro pela má condução das medidas de enfrentamento à pandemia. “O governo Bolsonaro é sinônimo de fake news. Vive de mentiras, da distorção de fatos, um método para manter sua base mobilizada”, diz.

Baseada nos elementos que a CPI já reuniu, a senadora vai além: “Já é possível concluir que a indicação de remédios sem eficácia teve como objetivo criar uma narrativa para sustentar junto à opinião pública a estratégia maior do governo, da imunidade de rebanho. Ou seja, uma cortina de fumaça”.

Mais do que isso, ela acredita que a CPI chegará a conclusões mais graves: “A CPI quer mais, acredita que, por trás das drogas inúteis, esteja uma máquina de ganhos fáceis, que ainda não sabemos qual a sua real dimensão e disseminação. Há muita gente ganhando dinheiro com esse jogo mesquinho do tratamento precoce”.

A CPI da Covid se divide em dois tempos: antes e depois da participação das senadoras. A senhora é autora do projeto de resolução que cria a liderança feminina no Senado e foi uma das articuladoras do acordo que garantiu a participação das mulheres na CPI. Os espaços de destaque, antes exclusivos dos homens no Parlamento, começam, enfim, a ser ocupados de forma justa e correta pelas mulheres?
A luta das mulheres por ocupação de espaços não começou agora, vem de antes. Só no Senado, já ampliaram esse espaço Marina Silva, Heloisa Helena, Marta Suplicy, tantas outras mulheres que fizeram história. Estamos acrescentando, alargando, é uma luta longa. Acreditamos que a CPI realmente ganhou nova vida com a maior participação das mulheres.

Única representante feminina na bancada do Maranhão, eleita com mais de 1 milhão de votos, acha que as mudanças na legislação eleitoral aprovadas pelo Senado vão garantir espaço maior para mulheres na política já em 2022?
Quando se facilita legalmente a presença das mulheres na política, isso cria emulação, novas relações de poder, demandas. A mulher se sente mais segura para assumir protagonismos. Mas isso não é resultado de um raio no céu azul. É uma acumulação. As mulheres precisam de tempo para alcançar o papel que a história lhe reserva.

Foi preciso um esforço monumental para que a bancada feminina tivesse voz na CPI. Por que isso ainda é uma realidade no Brasil? Qual o papel e a importância das mulheres nos trabalhos da CPI?
Como já frisei, toda luta não começa de um marco zero. Se obtivemos espaços de representação na CPI foi por nosso empenho e de mulheres antes de nós — e também por uma compreensão maior do universo masculino, que foi obrigado a avançar apesar de muitas resistências. Na CPI, trazemos o olhar feminino da tolerância, do respeito aos outros, aos depoentes, às mulheres, sem perder a objetividade que os fatos impõem. Acho que nós, mulheres, temos mais facilidade para nos despirmos do manto da arrogância.

Qual a forma adequada de lidar com os preconceitos sexistas no dia a dia dentro e fora do Parlamento? A discriminação de gênero a prejudicou em algum momento da sua vida pública?
Do ponto de vista pessoal, afirmando-se como mulher, respeitando a todos e se dando ao respeito. Nesse sentido, me sinto confortável no Congresso Nacional. No Brasil, já se avançou muito nessa questão de gênero, mas, obviamente, sempre tive de lutar contra discriminações no Parlamento. Senti-me preterida por ser mulher na escolha de relatorias e de outras atividades legislativas. Nem sempre de forma explícita, porém velada, sem explicitações. Diria que, para se alcançar o equilíbrio na representação entre homem e mulher, no quesito Congresso, onde atuo, para além do voto e medidas afirmativas legais, os debates e decisões precisam sair dos espaços físicos externos para dentro do Parlamento. Os homens costumam tomar suas decisões em ambientes externos. As mulheres, não, são mais institucionais.

A senhora participa de três das sete frentes definidas pela CPI durante o recesso. Uma delas foca na recomendação do uso de remédio sem eficácia comprovada contra a covid-19. O que se descobriu de novo nessa investigação específica? Esse desvio de conduta tem potencial para incriminar os responsáveis? E-mails de posse da CPI indicam que o Ministério da Saúde agiu deliberadamente para prescrever “tratamento precoce” no Amazonas, inclusive na crise de oxigênio. Mas a secretária Mayra Pinheiro disse que a pasta jamais cometeu esse ato. Ela será reconvocada?
Já é possível concluir que a indicação de remédios sem eficácia teve como objetivo criar uma narrativa para sustentar junto à opinião pública a estratégia maior do governo, da imunidade de rebanho. Ou seja, uma cortina de fumaça. Mas a CPI quer mais, acredita que por trás das drogas inúteis esteja uma máquina de ganhos fáceis, que ainda não sabemos qual a sua real dimensão e disseminação. Há muita gente ganhando dinheiro com esse jogo mesquinho do tratamento precoce.

Por que hospitais federais e organizações sociais no Rio de Janeiro entraram no foco da CPI?
Muito por causa do depoimento do ex-governador do Rio de Janeiro, de que os hospitais tinham dono. Isso é muito grave em um estado federado onde as milícias têm um poder de corrupção e de violência muito alto.

O presidente continua a defender a ivermectina, inclusive com declarações homofóbicas. Como a CPI pode impedir a disseminação de fake news por parte do presidente?
O governo Bolsonaro é sinônimo de fake news. Vive de mentiras, da distorção de fatos, um método para manter sua base mobilizada. O senador Alessandro Vieira, do meu partido, Cidadania, está cuidando desse assunto na CPI.

Qual a materialidade de corrupção nas apurações da CPI até agora? Há mais de 120 pedidos de impeachment contra Jair Bolsonaro. Há motivos para afastá-lo da Presidência?
Entre indícios e provas irrefutáveis sempre há alguma distância. Há declarações públicas de cometimentos de crime, indícios claros de tentativas de superfaturamento na compra de vacinas, relações não republicanas entre mercado e poder públicos, ações conscientes que atentaram contra a saúde do povo apenas por interesse ideológico. Já é possível traçar um comportamento de desdém do governo em relação à vida. Existem motivos mais que suficientes para afastar o presidente do cargo. Tudo está a depender de maiorias no Congresso Nacional. Na opinião pública, o presidente já perdeu o apoio, sustentabilidade.

Está convencida de que houve prevaricação do presidente Bolsonaro? Que provas a CPI já elencou para confirmar a prática de crime por parte do presidente?
Mesmo antes da CPI, o presidente Bolsonaro incorria em muitos crimes de responsabilidade. Para além dos palavrões, apologia de golpe e desmantelamento criminoso do Estado, a CPI descortina prevaricação do presidente em relação a processos de corrupção na compra de medicamentos e à morte de milhares de brasileiros.

Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
A pandemia sempre é uma tragédia, destrói riquezas, famílias inteiras, desorganiza países. O Brasil, infelizmente, ainda paga um sacrifício maior, por contar com um governo que não vê a nação pela perspectiva do humanismo. Portanto, o Brasil perde pela pandemia e pelo péssimo governo que tem. Mas acho que a pandemia traz alguns avanços pela dor que provoca, e soluções que cria. A vitória da ciência diante do negacionismo; a certeza de que sem o Estado e uma saúde pública a sociedade fica desamparada; a importância da unidade da nação frente a momentos graves — e esse não entendimento é o crime maior de Bolsonaro; práticas cotidianas melhores e preventivas em relação à saúde. Claro, sempre a sociedade sai de uma pandemia mais solidária, consciente de que a coletividade é algo muito importante.

Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
A humanidade não será mais a mesma. O mundo começará a perceber que a globalização não é mercado e negócio apenas. Há algo maior atrás de tudo: a vida, a solidariedade, os povos interdependentes. Creio que os governos irão valorizar mais a saúde pública, a ciência. O mundo precisa se dar mais as mãos, porque outras pandemias e tragédias de outra natureza estão a caminho, principalmente no campo climático. No mundo do trabalho, revolução à vista e sem volta: a adoção do trabalho remoto, que sacudirá a atual geração e as que virão, estas já com novos costumes, conhecimentos e práticas.

O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia? O momento exige resiliência e ativismo solidário. Engajou-se em alguma atividade coletiva mesmo a distância?
A vida de todo mundo mudou. Tivemos supressão do convívio familiar extensivo, o lazer se restringiu, a vida social sofreu um certo colapso. Apostei muito na vida do núcleo familiar, e isso foi muito bom. Tive a felicidade de participar de alguns eventos voltados à solidariedade humana. E aprendi muito a atuar em uma fronteira que veio para ficar: o trabalho, o contato, o afeto por meio do mundo virtual.

Que ensinamento este momento nos deixa?
Sou cristã, sempre acreditei nos ensinamentos de Jesus, de amor ao próximo, na humildade, na solidariedade. Se alguém passar pela pandemia e não reforçar esses valores, em sendo cristão, não entendeu nada, não sabe por que vive. A pandemia nos ensina a ter mais amor pelo próximo, a nos cuidar uns aos outros.

Como vê a perda de tantos brasileiros na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
A pandemia é cruel. Inevitavelmente, ceifaria a vida de muitos brasileiros. Mas com sua postura negacionista e desprezo pela vida, milhares de brasileiros morreram pela inépcia do governo federal, ao desdenhar da vacina e da adoção de regras higiênicas mais rígidas. Tudo em nome de uma imunidade de rebanho para, pretensamente, salvar a economia. Os países mais prudentes — EUA, Israel, Austrália, Alemanha, Inglaterra, entre outros — sofreram, mas cuidaram melhor do seu povo.

A importância da união em torno de um projeto suprapartidário, para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos, é possível?
Não se sabe ainda a dimensão dos resíduos da covid-19 na saúde da população. Não esperamos muita coisa do governo atual. O Congresso, porém, terá de construir ações unitárias para reduzir os malefícios da doença.

Mais de 130 mil crianças brasileiras perderam os pais ou cuidadores na pandemia. No mundo, são 1,5 milhão. Como anda o projeto que propõe fundo de amparo para órfãos da covid-19?
Essa é uma das questões a serem enfrentadas pelo Congresso. Eu mesmo apresentei projeto para que os órfãos não fiquem desamparados com a morte de seus progenitores. Meu projeto, inclusive, recebeu o apoio de senadores membros da Comissão Temporária da Covid-19, devido à sua relevância. Precisamos de união para enfrentar essa enorme tragédia.

Sua atuação na CPI deu visibilidade ao seu mandato. Quais são seus planos para 2022?
Tenho mandato até 2026. Pretendo trabalhar para manter à frente do Maranhão um governo progressista que mantenha as conquistas da gestão atual de Flávio Dino. E para dar, ao Brasil, um governo que supere a tragédia política representada por Bolsonaro, e que supere a polarização ideológica que nos consome e divide a sociedade. Tenho trabalhado para que a mulher possa participar das candidaturas majoritárias, tanto nos estados como em uma chapa presidencial. No Congresso, vou trabalhar pela ciência e continuarei a lutar pelos mais humildes, pelos índios, quilombolas, pela saúde pública, pelas mulheres, pela liberdade.