“Caminho para evitar tráfico de influência no Judiciário é a transparência”

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ANA MARIA CAMPOS/EIXO CAPITAL

Diante do debate sobre a conduta de magistrados, a coluna Eixo Capital ouviu especialista em direito processual penal sobre como evitar que a proximidade e o convívio social na comissão jurídica acabe se tornando um meio de lobby que outros atores do processo não têm acesso. O criminalista Thúlio Guilherme Nogueira, doutorando em direito processual penal pela USP, mestre em direito processual pela PUC Minas, falou sobre o assunto com o Correio:

O que fere a integridade não é a presença do magistrado na sociedade, mas a ausência da mesma abertura de diálogo para todos os atores do processo.

Acha necessária a criação de um Código de Ética para magistrados? Por quê?
A ética é sempre necessária, mas códigos de conduta não operam milagres. A iniciativa é louvável no papel, mas no Brasil temos um vício atávico de acreditar que problemas culturais profundos se resolvem apenas importando leis estrangeiras. O risco é criarmos uma “ética de vitrine”: um texto retoricamente belo, inspirado em uma Alemanha luterana e distante, que não resiste ao calor da nossa realidade patrimonialista. Precisamos de ética na prática, não apenas de manuais que servem como “biombos” para evitar discussões mais profundas sobre o poder.

Como estabelecer limites sendo ética um conceito que leva em conta padrões morais?
A ética pública não deve ser confundida com um projeto de perfeição moral individual; ela é, essencialmente, um mecanismo de autocontenção do poder. O limite ético não reside na subjetividade do magistrado, mas na estrita observância da lei e da paridade de armas. É um erro crer que a ética nasce do isolamento em uma ‘torre de marfim’. Pelo contrário: uma regra moral que apenas blinda o juiz do contato social pode ferir o princípio democrático da acessibilidade. O verdadeiro limite ético deve ser a garantia objetiva da imparcialidade. O magistrado goza de liberdade em sua esfera privada, desde que preserve a equidistância em relação às partes. Ética, na magistratura, traduz-se no dever de dispensar o mesmo tempo, o mesmo acesso e a mesma atenção a todos os atores do processo, independentemente de sobrenome, influência ou prestígio. Em última análise, a ética serve para assegurar que o julgamento seja fruto exclusivo da dialética processual, e não de assimetrias construídas fora dos autos.

É certo que há alguns conflitos evidentes entre interesses de cônjuges e outros parentes com o trabalho do magistrado. Precisa colocar isso no papel?

A resposta exige equilíbrio entre o pragmatismo e o rigor ético. Por um lado, o recente julgamento do STF na ADI 5953 foi corretíssimo ao derrubar o impedimento ‘por tabela’ (Art. 144, VIII do CPC). Não se pode exigir que um magistrado seja onisciente sobre a carteira sigilosa de clientes de um parente; a ética não pode impor o impossível, sob pena de gerar insegurança jurídica e permitir que as partes manipulem a escolha dos juízes. Contudo, não podemos cair no extremo oposto do ‘vale-tudo’. É inadmissível ignorar que, em muitos casos, escritórios são contratados não pelo brilho das teses, mas pelo ‘brilho’ do sobrenome ou pelo acesso privilegiado que ostentam. Portanto, colocar no papel é necessário, mas o foco deve mudar: em vez de tentarmos proibir o imponderável, devemos punir o desvio de finalidade. A ética deve atuar onde a influência vira mercadoria. Se a contratação de um parente visa apenas capturar a vontade e influência do julgador, estamos diante de um problema que ultrapassa a etiqueta e entra no campo da integridade institucional. Enfim, a solução não é criar impedimentos cegos que inviabilizam a Justiça, mas fortalecer mecanismos que identifiquem e sancionem o uso do parentesco como atalho para o êxito judicial

Até que ponto a vida privada do magistrado deveria ser alcançada pelo Código de Ética?

A privacidade do magistrado é um direito, mas a credibilidade da função é um dever. O magistrado não é um monge enclausurado, e tentar impor-lhe um ‘distanciamento asséptico’ é um erro que o descola da realidade social que ele tem o dever de julgar. Contudo, o exercício da jurisdição impõe uma etiqueta de poder e um ônus de exemplaridade. A vida privada passa a interessar ao Direito e à ética no exato momento em que ela transborda para a esfera pública, comprometendo a aparência de imparcialidade ou criando atalhos de influência. O problema não é o magistrado frequentar ambientes sociais, mas o risco de esses espaços se tornarem balcões de negócios ou zonas de acesso privilegiado, inacessíveis ao balcão do fórum. Portanto, o Código não deve policiar a intimidade, mas sim o conflito de interesses. A ética deve garantir que o prestígio do cargo não seja convertido em capital privado ou político. O termômetro é a confiança pública: se um ato da vida privada permite que o cidadão comum duvide, com razão, da equidistância do juiz, a fronteira ética foi rompida. Em suma, o magistrado tem o direito à sua individualidade, mas tem o dever funcional de não permitir que ela se converta em um privilégio processual.

O ministro Edson Fachin se orienta no Código de Ética alemão. Quais são os principais fundamentos?

O modelo alemão é centrado na doutrina da autocontenção (judicial restraint) e na transparência absoluta de vínculos. Seus fundamentos residem na regulação rigorosa de recepção de vantagens, na publicidade de atividades extrajudiciais e em quarentenas estritas para o pós-carreira. Contudo, a base alemã é deontológica: ela opera em uma sociedade de cultura luterana, onde a norma ética possui uma força orgânica de cumprimento. Tentar transplantar essa ‘Alemanha cinza’ para a complexidade do ‘Brasil solar’ e patrimonialista, sem ajustar os mecanismos de sanção, é um erro de perspectiva. O risco do transplante jurídico é focar na estética da norma — a ‘vitrine’ — e ignorar o ecossistema onde ela será aplicada. Sem enfrentar a hipertrofia do Judiciário e o sistema de freios e contrapesos, o código inspirado na Alemanha corre o risco de ser apenas uma tradução elegante de uma realidade que não nos pertence.

Hoje em dia ministros de tribunais superiores convivem em eventos, jantares e festas com advogados de processos que tramitam na Justiça e até com os próprios réus. Isso é ético?
A ética não reside no isolamento social, mas na equidade de acesso. O que é profundamente problemático não é o encontro em si, mas a assimetria que ele revela. Existe hoje uma ‘aristocracia do acesso’ que separa o advogado com timbre consagrado do jovem profissional de balcão, e ambos em relação ao Ministério Público, que historicamente goza de uma proximidade física e institucional com a magistratura. O convívio só deixa de ser ético quando se transforma em um filtro de exclusividade. É inaceitável que o diálogo técnico flua em jantares fechados, enquanto o gabinete permanece blindado sob o pretexto de um ‘distanciamento asséptico’. A ética deve servir para democratizar a voz das partes, não para criar zonas de influência inacessíveis ao cidadão comum. O que fere a integridade não é a presença do magistrado na sociedade, mas a ausência da mesma abertura de diálogo para todos os atores do processo.

Como seria possível impedir esse convívio?

Impedir o convívio em uma democracia é uma pretensão irreal e, sob certo aspecto, autoritária. O foco não deve ser a interdição do encontro, mas a neutralização do privilégio. A solução para o lobby não é o isolamento em torres de marfim, mas a transparência e a paridade de armas. Se um magistrado tem tempo para a vida social com grandes litigantes, ele deve ter, por dever de ofício, a mesma disponibilidade para o despacho técnico em seu gabinete com qualquer advogado. Em vez de tentarmos criar muros físicos impossíveis de policiar, devemos fortalecer a publicidade do acesso. A ética judicial moderna deve garantir que o ‘balcão do fórum’ tenha a mesma força e eficácia que o ‘salão de jantar’. O combate ao acesso privilegiado se faz com luz, não com sombras. A verdadeira ética é aquela que assegura que o destino de um processo seja decidido pela força das teses, e não pela proximidade dos brindes.”

Ana Maria Campos

Editora de política do Distrito Federal e titular da coluna Eixo Capital no Correio Braziliense.

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Ana Maria Campos
Tags: Código de conduta Codigo de ética Criminalista magistrados Thúlio Guilherme Nogueira transparência

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