Por Ana Dubeux
Há um ano e cinco meses, o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto, segue rigorosa quarentena. Só sai de 15 em 15 dias para uma volta de carro, com máscara e sem descer do carro. “Pra isso é que serve o dever da responsabilidade individual e coletiva. Se, em tema de saúde pública, a Constituição brasileira é de primeira qualidade, por que eu vou ser de quinta?”, compara, nesta entrevista ao Correio.
De casa, o magistrado, poeta, árduo defensor da Constituição, Ayres Britto continua a refletir sobre o país e acompanhar os desdobramentos de uma crise sem precedentes na história do Brasil.
“Há muitas lições a colher de uma crise que, no fundo, é de quatro conteúdos: o sanitário, o político, o econômico e o social. Tudo imbricado. E quando os problemas são assim tão graves quanto imbricados, é necessário recorrer à única lei que tem resposta de qualidade para tudo. É a Constituição. Que governa quem governa. Que governa permanentemente quem governa transitoriamente”, explica.
Para ele, a Constituição é o que faz da democracia o “princípio dos princípios”, o que faz a vida coletiva gravitar em torno de instituições, e não de pessoas. “Por isso que, entre nós, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Judiciário de falar por último. Por isso, se cuida de único regime a nos aquinhoar com uma antecipada certeza: nenhum eventual governante central subjetivamente autoritário vai conseguir nos impor um governo objetivamente autoritário”, defende.
Ayres Britto defende que é preciso fazer da Constituição mesa redonda para, em torno dela, buscar a saída da crise que já se aproxima de 570 mil mortes. Diz que a cidadania tem sido objeto de boicote e que a “Administração Pública não tem seguido uma trilha virtuosa” ao observar o tema saúde da população na Constituição.
“Mais uma vez, o que é preciso enfatizar é isto: somente se passa o Brasil juridicamente a limpo com a irrestrita observância da Constituição”, conclui.
Como a Justiça e o Direito se adaptaram às novas demandas da sociedade brasileira diante da pandemia?
O Direito está a serviço da vida, assim como a Justiça está a serviço do Direito. Por isso que, diante da emergência de uma vida coletiva sob gravíssima crise sanitária, ele, Direito, passou a se traduzir em leis declaratórias de um estado de emergência em todas as unidades da Federação brasileira. Estado de emergência, a seu turno, justificador de medidas administrativas de vacinação em massa, lockdown, distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo. Com um mais expressivo financiamento público em toda a rede hospitalar do País e como pronto-socorro financeiro à população mais economicamente débil. Tudo, por sinal, conforme o disposto no art. 196 da Constituição, que impõe ao Estado a adoção das políticas econômicas e sociais que se fizerem necessárias à administração da saúde como direito de todos e dever do Estado mesmo. Já a Justiça, como termo sinônimo de Poder Judiciário, ela cuidou de otimizar as dimensões do real e do virtual da nossa vida em sociedade, com ênfase para esta última dimensão. Com o que está dando conta da efetivação da regra igualmente constitucional de que o acesso à jurisdição é o maior dos direitos adjetivos ou instrumentais brasileiros. Donde ela, Constituição, sentando praça do dever estatal de não-negação de justiça, enunciar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (inciso XXXV do art. 5º).
Por que a pandemia, aqui no Brasil, se faz acompanhar de uma crise política do mais forte acirramento de ânimos?
Bem, é que vivemos numa democracia, e o fato é que democracia é o regime de ativação da cidadania. Cidadania que é fundamento do nosso Estado Democrático de Direito – nos termos do inciso II do art. 1º da Constituição de 1988 — e que se traduz em espírito público. Abertura para o coletivo. Interesse por tudo que é de todos. Cidadania é isso. O que faz da democracia a ambiência ou atmosfera ideal para um intercâmbio de ideias que tanto leva à formação de consensos quanto de dissensos. Tudo civilizada ou respeitosamente, porque o campo das ideias é totalmente objetivo. Tão objetivo em si quanto racionalmente fundamentado. O problema é que essa ambiência cidadã tem sido objeto de boicote. De turbação por grupos de interesses que intencionalmente confundem um objetivo dissenso com um subjetivo confronto. Com uma queda-de-braço ou um cabo de guerra, já sabendo da impossível conciliação de posicionamentos. Esta a crise política, porquanto ocorrente do lado de fora das ideias e das instituições, mesmo as partidárias. Reino da mais sectária e até caricata fulanização das coisas, enfim.
Que ensinamento este momento nos deixa?
Há muitas lições a colher de uma crise que, no fundo, é de quatro conteúdos: o sanitário, o político, o econômico e o social. Tudo imbricado. E quando os problemas são assim tão graves quanto imbricados, é necessário recorrer à única lei que tem resposta de qualidade para tudo, praticamente. Essa lei é a Constituição, aqui no Brasil. Que governa quem governa. Que governa permanentemente quem governa transitoriamente. Uma Constituição que faz da democracia aquele princípio-continente de que tudo o mais é conteúdo. O princípio dos princípios, então. O que mais favorece a formação de consensos e dissensos em clima político-social tão objetivo quanto civilizado. Além de fazer a vida coletiva gravitar muito mais em torno de instituições que de pessoas. Por isso que, entre nós, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro sobre as coisas, nem o Judiciário de falar por último. Por isso que se cuida de único regime a nos aquinhoar com uma antecipada certeza: nenhum eventual governante central subjetivamente autoritário vai conseguir nos impor um governo objetivamente autoritário. Assim como demonstrou a sociedade estadunidense no governo Trump.
Qual a saída para a crise?
Em suma, o de que precisamos é fazer da Constituição mesa redonda para, em torno dela, buscar a saída dessa multitudinária crise que já se aproxima de 570 mil mortes em nosso território. Sem nenhum culpa dela própria, Constituição, que faz da saúde um dever de toda pessoa estatal e um direito social-fundamental de cada indivíduo. Além de criar o SUS, priorizar os serviços e ações preventivas e ainda obrigar todo e qualquer Presidente da República, junto com o seu Vice, a prestar o compromisso de mantê-la, defendê-la e cumpri-la, quando do ato das respectivas posses. É como está no seu art. 78, ao lado de outros deveres funcionais também diretamente constitucionais.
Se é assim, estamos vivendo o paradoxo de um Direito bom e uma prática administrativa ruim?
Sim. A Constituição é muito boa, em tema de saúde da população, porém a Administração Pública não tem seguido na mesma virtuosa trilha. Principalmente a Administração Federal. Daí o número altíssimo de contaminações e de morte em escala nacional. O que tem faltado é o claro entendimento de que, em tema de saúde pública, a Constituição adota políticas de Estado que se impõem às políticas de governo. Esstas são transitórias, por definição, tanto quanto aquelas são permanentes. É como dizer: as políticas públicas de governo somente serão juridicamente válidas se compatíveis com as políticas públicas de Estado. Mais uma vez, o que é preciso enfatizar é isto: somente se passa o Brasil juridicamente a limpo com a irrestrita observância da Constituição. Tanto é assim que atentar contra o exercício dos direitos sociais (saúde é direito social da espécie fundamental) é crime de responsabilidade. É só ler o inciso III do artigo constitucional de nº 85.
No mesmo tema, o STF tem embaraçado o funcionamento da Administração Pública Federal?
Não! Em absoluto! O que disse o Supremo, acertadamente, foi isso: a) é competência material de todas as pessoas federadas cuidar da saúde da população; b) também é da competência legislativa comum ou concorrente de cada unidade federada brasileira legislar sobre… saúde, justamente. É como está no inciso II do art. 23 e no inciso XII do art. 24, combinadamente com os incisos I, II e VII do art. 30, todos da Constituição. Com o que deixou assentado a liderança, sim, da União, mas não a exclusividade de cuidar de um setor de atividade estatal que é direito de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país.
Como é ser jurista e um poeta a um só tempo?
É conciliar emoção e razão, nessa ordem. Ou quociente emocional e quociente intelectual, também nessa ordem. O primeiro a abrir os poros do segundo, e não o inverso. Isso na perspectiva da costura de uma unidade que talvez mereça o nome de… consciência.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Estou há um ano e cinco meses sob ortodoxa quarentena. Isso porque somente saio de casa para uma voltinha de carro, a cada quinze dias, ou para uma eventual consulta médica. Sempre com os elementares cuidados com o uso de máscara, com o distanciamento físico possível e com as palavras de ordem “álcool em gel em mim”. Pra isso é que serve o dever da responsabilidade individual e coletiva. Ah, também já tomei as duas doses da vacina Astrazeneca. Se, em tema de saúde pública, a Constituição brasileira é de primeira qualidade, por que eu vou ser de quinta?