Desde o tsunami eleitoral de 2018, os partidos operam um movimento de blindagem eleitoral que se caracteriza pelo abuso do poder econômico e garantias de impunidade
Um presidente da República não pode ser investigado nem processado pelo Supremo Tribunal Federal no exercício do mandato. Somente o Congresso pode fazê-lo, por um processo de impeachment, seja por causa da compra irregular de um Fiat Elba, seja uma “pedalada fiscal”, como aconteceu com os ex-presidentes Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff, respectivamente. É um processo político, cujo desfecho depende da consistência de sua base parlamentar. Ministros do STF também têm prerrogativas excepcionais, mas podem ter seus mandatos cassados pelo Senado.
Senadores e deputados não têm essa prerrogativa. Podem ser investigados e processados, como qualquer cidadão, mas apenas pelo Supremo, além da própria Casa. Agora, porém, a oposição e o baixo clero da Câmara se articularam para votar uma mudança constitucional que lhes garanta impunidade no exercício do mandato, obstruindo investigações da Polícia Federal (PF), que só ocorrem a mando do STF, por terem foro privilegiado. Além disso, querem acabar com esse mesmo foro para serem processados em primeira instância e, ainda, proibir decisões monocráticas sobre a constitucionalidade de suas deliberações e restringir o mandato dos ministros do Supremo.
Antes de outras considerações, é importante destacar que, aqui, não se trata de jogar a criança fora com a água da bacia. O Congresso é a representação política do conjunto da sociedade, reflete seu nível cultural e de consciência social, um perfil que, historicamente, está associado à qualidade da formação educacional dos eleitores, à forma como a sociedade se estrutura e ao regime político. O conservadorismo, o negacionismo, a transgressão e outros comportamentos que se fazem representar no Congresso somente serão superados quando houver uma ruptura da modernização do país com o atraso, o que nunca ocorreu.
Esse mesmo Congresso é o pilar da democracia e protagonista das reformas necessárias à modernização do Estado brasileiro, embora, ao mesmo tempo, conviva com a exclusão e as iniquidades sociais. Não pode ser objeto de um olhar maniqueísta. Tanto que não embarcou na tentativa de golpe de 8 de janeiro — manteve-se fiel à Constituição e respeitou o resultado das urnas, embora a maioria de suas lideranças tenha apoiado o ex-presidente Jair Bolsonaro.
Desde o tsunami eleitoral de 2018, o Congresso, liderado pela Câmara dos Deputados, opera um movimento de blindagem eleitoral que se caracteriza pelo abuso do poder econômico nas eleições, por meio de vultosas verbas do Orçamento da União e do controle sobre os fundos partidário e eleitoral. O continuado esforço da cúpula das legendas para controlar verticalmente os partidos, por meio de comissões provisórias, e assegurar a reprodução dos seus mandatos, com o financiamento público, restringe as possibilidades de renovação política, porque cria uma “disparidade de armas” nas campanhas eleitorais. Um claro abuso de poder econômico, inclusive dentro das próprias legendas.
Partidocracia
Os mandatos se perpetuam ou se renovam no próprio âmbito familiar, por razões etárias ou legais. Esse fenômeno não é novo, mas recrudesceu com a emergência das redes sociais e a eleição de “influenciadores” com votações espetaculares, que rompeu as blindagens. Certas frentes parlamentares — evangélicos, agronegócio, bancada da bala, por exemplo, que se apoiam em estruturas poderosas economicamente — transpassam os partidos e, em alguns casos, têm mais influência do que as bancadas nas decisões da Câmara.
O jurista italiano Norberto Bobbio descreve a partidocracia como o domínio dos partidos sobre toda a esfera da vida política: “Em vez de subordinarem os interesses partidários e pessoais aos interesses gerais, grandes e pequenos partidos disputaram para ver quem consegue desfrutar, com maior astúcia, de todas as oportunidades para ampliar a própria esfera de poder. Em vez de assumirem as responsabilidades de seus comportamentos mais clamorosos e criticáveis, empregam toda a habilidade dialética para demonstrar que a responsabilidade é do adversário, a tal ponto que o país vai se arruinando e ninguém é responsável” (As ideologias e o poder em crise, Editora UnB, DF, 1999).
As principais ferramentas da partidocracia são o financiamento público das legendas e das campanhas, e a atribuição de cargos em vastos setores da sociedade e da economia, segundo critérios predominantemente políticos. Essa formulação nasceu na crise política italiana dos anos 1980, que levaria de roldão seus principais partidos – Democracia Cristã, Partido Comunista e Partido Socialista —, mas se aplica perfeitamente ao que estamos vendo no Brasil. Em algum momento, a sociedade reagirá como em junho de 2013.
Entretanto, temos uma agravante: a simbiose com o coronelismo recidivo, alavancado pelo poder do agronegócio. Clássico da ciência política brasileira, Coronelismo, enxada e voto, o município e o sistema representativo no Brasil (Companhia das Letras), de Victor Nunes Leal, publicado em 1948, descreveu o fenômeno como um sistema que articulava os poderes central e local, a partir dos interesses da elite rural.
Inaugurado pelo governo Campos Sales (1898-1902), com sua política dos governadores, na base do “é dando que se recebe”, era uma cadeia de favores que se estendia do presidente da República aos fazendeiros e trabalhadores rurais, por meio do chamado voto de cabresto, imposto pela força dos coronéis da antiga Guarda Nacional. O título era adquirido por representantes da elite rural e que lhe dava o direito de formar suas próprias milícias. Não estamos nesse estágio, mas chegamos perto no governo Bolsonaro. O cabresto agora também existe na periferia e favelas das cidades.
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