Nas entrelinhas: Lula encontra Biden e Zelensky e antecipa volta ao Brasil

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Lula retomou a tradição brasileira. Tratou de todos os temas que desafiam o mundo globalizado, cobrou dos países ricos os recursos prometidos para a transição energética 

A participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, depois de quatro anos de governo Bolsonaro, reposicionou o Brasil no cenário internacional, na linha que nos levou à condição de país que faz a abertura dos trabalhos da instituição. O Brasil voltou à defesa do multilateralismo, como é da nossa tradição, e assumiu uma posição de liderança incontestável no enfrentamento das mudanças climáticas e no combate à fome e à desigualdade. Lula fez um discurso no qual foi, sim, um porta voz dos países em desenvolvimento. Enquanto uma das maiores democracias do mundo, essa é a liderança que lhe cabe como presidente.

“O Brasil está de volta” mesmo, não apenas nas palavras de Lula, que foi uma espécie de freguês de carteirinha de quase todos os encontros multilaterais realizados desde sua posse. Nesta terça-feira, colheu os frutos de seu protagonismo. “O Brasil está se reencontrando consigo mesmo, com nossa região, com o mundo e com o multilateralismo”, disse na ONU. “Resgatamos o universalismo da nossa política externa, marcada por diálogo respeitoso com todos.” Foi uma mudança da água para o vinho no posicionamento do Brasil na mais importante instituição de governança mundial, em que pese seus problemas, como ficou demonstrado durante a pandemia.

São raros os momentos na história do Brasil em que o país andou para trás, mais raros ainda aqueles em que o país diminuiu de tamanho em relação às demais nações do mundo. Em 2019, um agressivo e radical discurso do então presidente Jair Bolsonaro, na qual reiterou posições ultraconservadoras, antiambientalistas e antiglobalistas, transformou o país em um autoproclamado “pária internacional”. Jogou no lixo um legado de gerações de diplomatas, desde Rio Branco, que todo presidente da República, inclusive os militares, valorizaram. A tradição de o Brasil fazer a abertura da Assembleia Geral começou no segundo encontro mundial, quando discursou o então ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha; Bolsonaro usou-a para fazer proselitismo negacionista e de extrema direita.

O choque foi muito grande, porque o privilégio se manteve ao longo dos anos, sem que houvesse qualquer texto ou norma da ONU que determine a sua obrigatoriedade. A tradição é o Brasil buscar um ponto de equilíbrio, um posicionamento que corresponda ao consenso majoritário, fugindo dos confrontos entre as nações. Na ONU, Bolsonaro quebrara essa tradição, ao fazer um discurso duro, quase belicoso, que elegeu como adversários os indígenas, os ambientalistas, alguns líderes europeus e seus adversários de sempre: os líderes da Venezuela, de Cuba e dos partidos de esquerda. Foi um discurso para o público bolsonarista, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e outros líderes conservadores com os quais se alinhava.

Lula retomou a tradição brasileira. Tratou de todos os temas que desafiam o mundo globalizado, da crise climática, cobrou dos países ricos os recursos prometidos para a transição energética e a preservação das florestas, sobretudo a Amazônia, que foi o tema de seu encontro com os líderes da Alemanha e da Noruega. Sem os recursos prometidos, o Acordo de Paris e o Marco Global da Biodiversidade serão letra morta. Outros destaques foram para os temas da fome e da desigualdade: “Estabilidade e segurança não serão alcançados onde há exclusão social e desigualdade”, afirmou. Anunciou que pretende transformar a agenda do combate às desigualdades num marco de sua passagem pela presidência do G20.

Mercosul

O presidente brasileiro teve um posicionamento estratégico correto ao tratar do tema no qual mais tropeçou na sua diplomacia presidencial: a guerra da Ucrânia. Sua declaração de que conflito “escancara nossa incapacidade coletiva de fazer prevalecer os propósitos e princípios da Carta da ONU” manteve as pontes com a Rússia, mas abriu caminho para o importante encontro que terá ainda nesta quarta-feira com o presidente ucraniano Volodymir Zelensky. Outro tema polêmico foi a crítica ao bloqueio econômico contra Cuba, que é uma posição da diplomacia brasileira desde o restabelecimento das relações com o governo cubano, pelo presidente José Sarney, em 1986.

Na agenda de bilaterais, Lula esteve com o presidente da Áustria, Alexander van der Bellen, em Nova York, para tratar da COP30, em 2025, em Belém, e da transição energética. Há empresas austríacas em buscar oportunidades de investimento no Brasil. Também esteve com o primeiro-ministro da Alemanha, Olaf Scholz; e com o primeiro-ministro da Noruega, Jonas Gahr Store, para tratar do Fundo da Amazônia, cujos recursos foram congelados durante o governo Bolsonaro. Esses encontros foram muito importantes por causa das negociações do Acordo entre o Mercosul e a União Europeia, que estava travado.

As possibilidades de o acordo finalmente sair são reais. Uma mudança significativa ocorreu nesta semana. A União Europeia sinalizou a disposição de concluir o acordo até dezembro. Uma das razões é a guerra da Ucrânia, que está prejudicando toda a economia europeia. A resposta do Mercosul às exigências adicionais ambientais da União Europeia (UE), para conclusão do Acordo de Associação Birregional, está sendo assimilada. O bloco está disposto a levar em conta a legislação interna dos países e considerando “diferentes circunstâncias nacionais’”, mas rejeita imposição unilateral de Bruxelas.

Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai querem incluir um mecanismo de compensação: se o Mercosul considerar que regulamentações unilaterais europeias reduzem as concessões feitas no acordo, algo terá de ser feito logo para compensar essa situação. Na União Europeia, a resposta do Mercosul acelerou as negociações. Os 27 Estados-membros receberam o comunicado, e o presidente da Comissão de Comércio do Parlamento Europeu, Bernd Lange, anunciou que a contraproposta do Mercosul está sendo analisada: “Precisamos construir uma parceria genuína e igualitária que aborde os desafios mais urgentes de nosso tempo, inclusive o desmatamento. Só poderemos enfrentar as mudanças climáticas se estivermos de acordo e trabalharmos juntos”, declarou.

A determinação europeia é de concluir os acordos com o Mercosul, México e Austrália até o fim do ano. Como sinal de que a questão ambiental ajuda no processo, o diretor-geral de Comércio da Comissão Europeia, Rupert Schlegelmilch, retuitou uma declaração da ministra de Meio Ambiente, Marina Silva, promovendo o acordo birregional: “Reduzimos o desmatamento na Amazônia em 48% nos primeiros sete meses do ano. Portanto, o acordo de livre comércio deve ser assinado agora”. O vice-presidente executivo da UE, Valdis Dombrovskis, destacou que os acordos comerciais são mais importantes diante das mudanças geopolíticas. A União Europeia precisa reorganizar suas cadeias de suprimentos, promover segurança, bons empregos e prosperidade.