Nas entrelinhas: A língua do índio

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“O Brasil tem cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional”

Um grito de guerra virou bordão no Centro Cultural da CCBB, onde funciona a equipe de transição do presidente eleito, Jair Bolsonaro: “Selva!” É um cumprimento militar adotado em todas as unidades vinculadas ao Comando Militar da Amazônia (CMA), espalhadas em 62 localidades e envolvendo seis estados e partes do Maranhão e do Tocantins. A saudação simboliza a integração entre oficiais e a tropa formada por caboclos, mamelucos e índios.

Um vídeo produzido pelo próprio Exército brasileiro, nos confins da Amazônia, ilustra a mística: mostra meia dúzia de soldados-índios de diversas etnias se apresentando em sua língua nativa, mas fazendo a saudação em português que virou bom dia e boa noite também no Palácio do Planalto, entre funcionários do governo que fazem parte da mobília do poder e aguardam os novos chefes. A origem da saudação é a Oração do Guerreiro da Serva, de autoria do tenente-coronel Humberto Leal, que vive em Petrópolis, a Cidade Imperial. “Dai-nos hoje da floresta:/A sobriedade para persistir;/A paciência para emboscar;/A perseverança para sobreviver;/A astúcia para dissimular;/A fé para resistir e vencer. /E dai-nos também, Senhor, /A esperança e a certeza do retorno”, diz o principal trecho da oração, que resume o treinamento dos batalhões especiais de selva.

Em São Gabriel da Cachoeira (AM) ou no 5º Pelotão de Fronteira de Maturacá, aos pés do Pico da Neblina, na divisa com a Venezuela e a Colômbia, os soldados índios das etnias tucano, inhangatú, aruac e yanomami são maioria na tropa. Entretanto, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, quando Comandante Militar da Amazônia, notabilizou-se pela crítica à política indigenista tradicional e anteviu a possibilidade de conflitos na região, por causa da Venezuela e da Guiana, entre outros pontos da fronteira. Esse é o xis da polêmica sobre a demarcação da Reserva Raposa-Serra do Sol, uma das maiores terras indígenas do país, com 1.743.089 hectares e 1.000 quilômetros de perímetro. O nióbio é só um pretexto. Mais da metade da área é constituída por vegetação de cerrado, lá chamado de “lavrado”, e uma região montanhosa cujo topo é monte Roraima, marco da tríplice fronteira entre Brasil, Guiana e Venezuela. É impossível, porém, guarnecer a região sem o apoio dos índios.

Recentemente, o Departamento de Estado norte-americano pressionou o governo brasileiro para que mandasse tropas para Guiana, temendo uma invasão venezuelana do país vizinho, o que foi rechaçado pelo governo Temer. Nesse aspecto, o futuro ministro-chefe do gabinete de Segurança Institucional tem razão: a política do governo Bolsonaro vai aumentar a tensão na fronteira com os venezuelanos. A dúvida é se mandaremos nossos soldados-índios para Guiana.

Inganhatú

O Brasil tem atualmente cerca de 600 terras indígenas, que abrigam 227 povos, com um total de aproximadamente 480 mil pessoas. Essas terras representam 13% do território nacional, ou 109,6 milhões de hectares. A maior parte — 108 milhões de hectares — está na chamada Amazônia Legal, que abrange os estados de Tocantins, Mato Grosso, Maranhão, Roraima, Rondônia, Pará, Amapá, Acre e Amazonas. Quase 27% do território amazônico hoje é ocupado por terras indígenas, sendo que 46,37% de Roraima correspondem a essas áreas. Isso se tornou o grande pomo da discórdia por causa do choque com arrozeiros, pecuaristas, madeireiros e garimpeiros que atuam ilegalmente nas reservas.

Esse choque agora tende a se acentuar, porque o responsável nomeado para responder pelo licenciamento ambiental e as políticas de reforma agrária é o atual presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Nabhan Garcia. Ele vai assumir funções que hoje cabem à Fundação Nacional do Índio (Funai), ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e à Fundação Palmares, que serão esvaziadas. Sai de baixo. É bom lembrar que as tribos indígenas de hoje são as que resistiram à escravidão e ao extermínio.

E a língua do índio? A música Tu Tu Tu Tu Tu Tupi, de Hélio Ziskind, virou roteiro de um vídeo que faz muito sucesso nas redes sociais. Diz a letra: “Todo mundo tem/um pouco de índio/dentro de si/dentro de si/Todo mundo fala/língua de índio/Tupi Guarani/Tupi Guarani/E o velho cacique já dizia/tem coisas que a gente sabe/e não sabe que sabia/e ô e ô/O índio andou pelo Brasil/deu nome pra tudo que ele viu”. Deu mesmo: jabuticaba, caju, maracujá, pipoca, mandioca, abacaxi, tamanduá, urubu, jaburu, jararaca, jiboia, tatu, arara, tucano, araponga, piranha, perereca, sagui, jabuti, jacaré, Maranhão, Maceió, Macapá, Marajó, Paraná, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Jundiaí, Morumbi, Curitiba, Parati, Tatuapé (caminho do tatu).

Não é o caso do presidente eleito, Jair Bolsonaro, descendente de italianos e alemães, mas a maioria dos brasileiros tem sangue indígena. Vem daí a simpatia por eles. Um dos mitos fundadores do Exército Brasileiro é o índio potiguar Antônio Felipe Camarão (poty, na língua tupi). Em Glicério (SP), onde nasceu o presidente eleito, até meados do século 19 falava-se inhangatú, a língua geral paulista disseminada pelos bandeirantes pelo país afora. Cerca de 73,31% dos 29,9 mil habitantes de São Gabriel da Cachoeira, na Cabeça do Cachorro, onde as Forças Armadas mantêm várias unidades, falam o tucano, o baníua e, principalmente, o nheengatu ( a língua geral da Amazônia, também de origem tupi), que mantém o caráter de língua de comunicação entre índios e não-índios, ou entre índios de diferentes etnias , como os barés, os arapaços, os baniuas, os werekena.

Vídeo de soldados índios: https://www.youtube.com/watch?v=XiimXLxJL-w