Colapso à vista ou a prazo

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VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)

Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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Charge do Duke

 

Para um mundo tão conectado como o nosso, surpreende que as pessoas se sintam e reclamem que nunca se sentiram tão sozinhas. Há um hiato imenso a separar o mundo virtual da realidade. Mas poucos percebem ou entendem esse fato simples. São em brechas assim, criadas pelo avanço das tecnologias e por onde medra a solidão humana, que surgem novos conceitos tentando explicar a coexistência entre esses dois mundos tão diversos e distantes. Um desses conceitos é o da “pós-verdade”. O termo, que parece sofisticado, é, na verdade, o sintoma de um colapso mais profundo: o da razão.

Vivemos um tempo paradoxal. Nunca o mundo esteve tão conectado, tão próximo em aparência e tão distante em essência. À cada toque, um universo de informações se abre diante de nós; à cada clique, a ilusão de pertencimento se renova. E, no entanto, jamais estivemos tão sós. É a solidão das telas, o eco do vazio nas redes, a angústia de uma convivência mediada por algoritmos. Entre o mundo virtual e a realidade concreta, ergue-se um abismo que poucos percebem, e menos ainda compreendem.

Nesse ponto, o mundo virtual se aproxima da realidade que está aí. Moldar a opinião pública e os mecanismos mentais das massas, levando-as a crer que os fatos objetivos já não importam para entender o mundo em volta. As emoções e as crenças passam a ocupar ou usurpar o lugar da racionalidade e mesmo do bom senso. A esse novo conceito, liga-se a política pós-factual, no qual os debates perdem lugar para apelos emocionais e crenças. O fato em si não interessa. Importa o sentimento que ele provocou no seio da sociedade. É o caso aqui de citar como exemplo, a tese, levantada de que a Operação Lava Jato causou um sério prejuízo econômico para o país, gerando milhares de desempregados, além de comprometer boa parte do desempenho da indústria nacional.

O Brasil experimenta, assim como parte de alguns países da Europa, os efeitos de um autêntico processo de pós-verdade. Para mantê-las distante, é preciso açular as polarizações ao extremo. A começar a chamar de extremista quem quer que discorde do discurso dominante. No futuro, os historiadores terão que consultar, antes de qualquer pesquisa acadêmica séria, o verbete “pós-verdade”, para depois entender o contexto geral dos acontecimentos, naqueles tempos confusos em que até a linguagem foi alterada em suas bases.

A pós-verdade não nega a existência dos fatos; ela simplesmente os torna irrelevantes. O que passa a importar não é o que é, mas o que se sente. Em seu império, a emoção subjuga o raciocínio, a crença substitui a prova, e o discurso domina a realidade. É o triunfo do parecer sobre o ser, da impressão sobre o conhecimento.

Nas democracias ocidentais, e o Brasil não é exceção, o fenômeno se manifesta com uma nitidez assustadora. A política, transformada em espetáculo, trocou o debate de ideias pela dramaturgia das redes sociais. A lógica cedeu espaço à histeria, e os argumentos, às narrativas. A opinião pública deixou de ser fruto da reflexão coletiva para tornar-se um produto moldado por máquinas de convencimento emocional. A política pós-factual é o rosto institucional dessa nova era. Quando os fatos deixam de ter peso, qualquer tese pode florescer, desde que embalada por apelos sentimentais e compartilhada milhões de vezes. Basta um fragmento de verdade, distorcido e repetido, para se tornar dogma. Assim, quando um político experiente afirma que a Operação Lava Jato foi a responsável pela crise econômica, não está preocupado em confrontar dados ou medir consequências objetivas; interessa-lhe apenas o efeito emocional da frase, a reação que ela provoca, o ressentimento que alimenta.

Vivemos um tempo em que o contraditório é tratado como ameaça, e o pensamento independente, como extremismo. A crítica virou heresia; o diálogo, confronto. Para que a pós-verdade se sustente, é necessário que a sociedade se polarize até o limite. Quanto mais divididos estivermos, mais frágeis seremos diante das narrativas que nos prometem sentido. Mas esse processo não é apenas político. É civilizacional. A linguagem, que sempre foi o espelho do pensamento, começa a se deformar. Palavras antigas perdem significado; outras, recém-inventadas, passam a dominar o vocabulário coletivo. É uma Babel digital em que todos falam, mas poucos se entendem. A velocidade da informação destrói o tempo da reflexão. A superficialidade virou método; a dúvida, crime.

Nesse contexto surreal, em que a mentira adquire status de opinião e a verdade é vista como arrogância, o papel da imprensa torna-se ainda mais essencial e cada vez mais difícil. O jornalismo, que nasceu para separar o fato da ficção, precisa agora resistir à tentação de se tornar ele próprio uma narrativa. Em tempos de pós-verdade, reportar é um ato de coragem; investigar um gesto de resistência. E o que virá depois? Se já habitamos o território da pós-verdade, talvez estejamos a um passo daquilo que poderíamos chamar de pós-verdade-pós. Uma era em que até o simulacro se desfaça e o real deixa de ser relevante. Um tempo em que o virtual não mais imite o mundo, mas o substitua. Nessa fase, não haverá sequer a pretensão de convencer, bastará emocionar. Não se disputará mais o sentido dos fatos, mas o direito de senti-los. O perigo é que, nesse horizonte, a própria ideia de verdade, essa noção que estruturou milênios de cultura e filosofia, torne-se uma relíquia. Um conceito antigo, talvez romântico, de um tempo em que ainda acreditávamos que a razão pudesse iluminar as sombras.

Contudo, ainda há uma saída. Ela começa na consciência individual de que pensar é um ato de liberdade. Que duvidar é uma virtude, não um defeito. Que a verdade, por mais incômoda que seja, é o único solo firme sobre o qual uma sociedade pode erguer-se. Se a verdade for mesmo abolida, se nos rendermos à sedução das emoções e ao conforto das crenças, então o que virá depois da pós-verdade não será uma nova era, mas a repetição de caminhos longes da verdade nua e crua.

 

A frase que foi pronunciada:

“Então aqui cabem as seguintes perguntas: Isso a que se hoje se nomeia “pós-verdade”, não seria apenas uma nova fachada para um fenômeno bem antigo, a saber, a mentira na política?”

Charles Feitosa

Charles Feitosa. Foto: sescsp.org

 

História de Brasília

A Asa Norte do Plano Piloto continua com os mesmos problemas de há seis meses. No lado comercial, não há compradores, e no lado residencial, não há comerciantes. (Publicada em 10.05.1962)

Pós-verdade e humanismo

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Charge do Shovel

 

         Num futuro, não muito distante, quando a poeira do pandemônio das eleições se assentar, alguns filósofos, historiadores e mesmo sociólogos terão, em mãos, farto material para o desenvolvimento de trabalhos teóricos abordando a chamada “pós-verdade”, não apenas referente ao pleito de 2022, mas em torno de todo o modelo de governança política do Brasil contemporâneo.

         De fato, a pós-verdade, mais do que um simples neologismo, retrata o fenômeno atual no qual a opinião pública passa a ter seus critérios subjetivos de avaliação da realidade, modificados por ação de diversos meios e mídias, que passam a insistir na tese de que os fatos objetivos, aqueles que estão estampados na cara de todo mundo, possuem valores e influências bem inferiores aos apelos às emoções e às crenças pessoais.

         É como se alguém insistisse: esqueça os fatos e centre-se nos apelos emocionais e nas crenças, pois aquilo que aparenta ser a verdade é bem mais importante e valioso do que a própria verdade. Como exemplo, temos que a propaganda política e mesmo os debates que, envergonhadamente, assistimos são construídos a partir desse fenômeno denominado política pós-factual.

         Nesse ramo, em que a verdade e os fatos passam a ter uma importância secundária e quase insignificante, estão, ao lado dos políticos, a mídia jornalística, os institutos de pesquisa de opinião, os marqueteiros e outros atores, todos eles empenhados em um processo de dar um novo ou falso verniz aos fatos, colorindo ou tornando-os cinzentos e opacos.

         As consequências desse processo perverso e contínuo são imensas para a sociedade não apenas no Brasil, onde esse fenômeno parece ter atingido os píncaros do exagero, mas em todo o mundo moderno.

         A exemplificar esse fenômeno, temos a estória infantil A roupa nova do rei, do dinamarquês Hans Christian Andersen, publicado em 1837. Fosse transladada para nosso tempo e momento, teríamos uma cena em que um dos candidatos à Presidência, diante das câmeras, completamente nu ou sem as vestimentas da ética, quisesse convencer aos contribuintes e eleitores que é o mais impoluto de todos. Teoria amalucada que seria então reforçada pelos mais empenhados apresentadores e comentaristas.

         Com o título de “Pós-verdade e as Eleições no Brasil”, qualquer pesquisador sério poderá preencher tomos e mais tomos retratando essa meia realidade que parece ter tomado conta do Brasil da relatividade. Em nosso país atual, a verdade foi assassinada bárbara e misteriosamente. As investigações policiais, conduzidas pelos métodos que já conhecemos, chegam à conclusão de que foi um suicídio comum. Para o público, os fomentadores da pós-verdade passam a difundir a ideia de que o importante não foi o crime em si, mas o sentimento de insegurança que despertou em todos e o medo trazido pelo problema da violência em nosso país.

         Em nosso caso particular, as discussões e debates políticos, de baixo nível, com acusações e xingamentos mútuos, seguidos dos comentários dos analistas políticos, formam um conjunto coeso que aponta para os conceitos da pós-verdade, em que os fatos, ou a situação e os meios para enfrentar os problemas nacionais ficam em segundo plano e parecem não possuir importância.

          Pós-verdade pode ser ainda a possibilidade do registro, pelo TSE, da candidatura à presidência da República de personagem impossibilitado legalmente, ou à revelia da lei, de apresentar a documentação completa e básica, como as certidões negativas que provam sua condição de elegibilidade e sua ficha limpa perante a Justiça.

         Dentro de um conceito dessa natureza, tudo torna-se possível, inclusive a tentativa de apagar o passado, acusando os fatos pretéritos de fake news, num movimento atroz de esmagamento do factualismo. Ao construir biografias com versões repaginadas e maquiadas, o que os fomentadores da pós-verdade almejam é a modelação de um mundo de ficção, onde o indivíduo passa de objeto concreto a virtual, e a equiparação do cérebro do homem a uma inteligência artificial, moldável e programável, despida de humanidade e todo e qualquer humanismo.

A frase que foi pronunciada:

“A diferença mais marcante entre os sofistas antigos e modernos é que os antigos se contentavam com uma vitória passageira do argumento em detrimento da verdade, enquanto os modernos querem uma vitória mais duradoura em detrimento da realidade. Em outras palavras, um destruiu a dignidade do pensamento humano enquanto os outros destroem a dignidade da ação humana. Os antigos manipuladores da lógica eram a preocupação do filósofo, enquanto os modernos manipuladores dos fatos se interpunham no caminho do historiador. Pois a própria história é destruída, e sua compreensibilidade – baseada no fato de que é encenada pelos homens e, portanto, pode ser compreendida pelos homens – está em perigo, sempre que os fatos não são mais considerados parte integrante do mundo passado e presente, e são usados indevidamente para provar esta ou aquela opinião”.

Hannah Arendt, filósofa em As Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt. Foto: brasil.elpais.com

 

Agora é a hora!

Dos quase R$ 45 milhões de créditos suplementares aprovados pelos deputados distritais ao Orçamento do GDF, R$ 30 milhões serão repassados à Novacap para atender despesas com manutenção de áreas verdes, execução de obras de urbanização, reforma e manutenção de feiras permanentes. Quem tiver cobranças a fazer, agora é a hora!

Foto: novacap.df.gov

 

História de Brasília

Depois de um desentendimento com o dr. José Lafalete, o DNER construirá, agora, a estrada e o campo de pouso da fazenda do presidente João Goulart em Uruaçu. (Publicada em 11.03.1962)