Compromissos atrás das grades

Publicado em Deixe um comentárioÍNTEGRA

Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

jornalistacircecunha@gmail.com

facebook.com/vistolidoeouvido

instagram.com/vistolidoeouvido

 

Foto: Arquivo/Agência Brasil – 21 de março de 2020

 

Enquanto as cadeias transbordam, o país falha em entregar aquilo que se espera de um Estado de direito: investigação eficaz, responsabilização igualitária e prevenção real da violência. O custo do sistema judiciário para o contribuinte dispara: o Poder Judiciário registrou gastos que chegaram a patamares recorde nos relatórios recentes, atingindo cifras na casa das centenas de bilhões de reais anuais, valor que não se converteu em sensação de justiça universal. Há, portanto, um paradoxo que clama por explicação: mais gasto, mais prisões, melhor justiça?

Parte essencial da explicação está na seletividade penal. Dados organizados por instituições de pesquisa mostraram que a grande massa da população carcerária não corresponde à parcela de crimes mais graves: uma parcela relativamente baixa dos presos está detida por homicídios; a maioria responde por crimes patrimoniais ou ligados às drogas. Paralelamente, estudos sobre esclarecimento de homicídios indicam que o país soluciona pouco mais de três em cada 10 assassinatos. Os índices tornam explícita uma escolha perversa de prioridades: prendemos muito por furtos e tráfico de pequenas escalas, mas investigamos mal os crimes contra a vida. Em outras palavras, prisão em massa convive com baixa elucidação de homicídios. O resultado prático é corrosivo: o sistema penal funciona como mecanismo seletivo que recai sobre os mais vulneráveis, enquanto redes de influência encontram vias de proteção.

Há ainda um problema institucional profundo: a incapacidade investigativa. Sem polícia científica robusta, sem integração de bases de dados e sem estruturas de investigação bem financiadas e tecnicamente capacitadas, o aparelho estatal congela nas portas da delegacia. A consequência é fácil de prever: crimes complexos, que exigem perícia, rastreamento financeiro e cooperação entre estados, ficam sem respostas, ao passo que operações espetaculares de repressão a pequenas redes ganham noticiário e produzem prisões massivas de menor impacto sobre a segurança pública. Investir mais no que não soluciona os grandes danos sociais é, em última análise, um desperdício dos recursos já elevados do sistema.

Também é preciso tratar das prisões enquanto espaços de violência e morte. Relatórios oficiais registram números alarmantes de mortes dentro do sistema penitenciário, muitas delas violentas e em contexto de superlotação. A vulnerabilidade à violência interna nas prisões é quatro vezes maior do que na população geral, segundo compilações recentes, e o suicídio entre presos também aparece de forma elevada.

São três as dimensões de recuperação do sistema — técnicas, políticas e culturais —, que não admitem atalhos punitivistas simplistas. Primeiro, é preciso dar prioridade às investigações e à eficácia policial. Isso significa dotar as polícias civis de infraestrutura pericial (laboratórios, exames de DNA, análise de telecomunicações), modernizar sistemas de informação e criar métricas públicas e padronizadas para medir o esclarecimento de crimes graves.

Segundo: a revisão da política penal. É indispensável deslocar do cárcere pessoas condenadas por crimes menores ou que poderiam responder em regime alternativo, multas, prestação de serviços, medidas restaurativas e, sobretudo, quando a prisão se tornou depósito e fator de aprofundamento da criminalidade. A redução da população carcerária passa, obrigatoriamente, por descriminalização calculada (onde for pertinente), alternativas penais e judicialização mais criteriosa, sem sacrificar o necessário combate aos crimes graves.

Terceiro: eficiência judicial e transparência. Gastos públicos crescentes no Judiciário devem ser acompanhados por metas de desempenho reais — redução de atrasos, prioridade a casos de maior dano social e transparência sobre decisões de concessão de medidas cautelares e progressões de pena. Transparência e padronização reduzem espaço para favoritismos e para a percepção, hoje dominante, de que há uma lei para poucos e outra para muitos.

Quarto: combate à impunidade seletiva e à corrupção. Isso exige audácia institucional, fortalecer corregedorias, promover responsabilização administrativa e criminal de agentes públicos que atuem fora da lei e aperfeiçoar mecanismos de investigação sobre elos de poder que protegem criminosos de alta complexidade. Sem equidade na aplicação da lei, qualquer política será percebida como política de caça aos pequenos e blindagem aos grandes.

Quinto: investir em educação, trabalho e políticas de inclusão nas periferias é tão parte da “aplicação da lei” quanto prender. Países que reduziram taxas de crime com consistência apostaram, simultaneamente, em prevenção social e em eficácia investigativa.

Por fim, há uma exigência moral e republicana: que o discurso punitivo não sirva de verniz para desigualdades estruturais. Justiça é, ou deveria ser, a conjugação de regras iguais para todos. Só assim, deixaremos de medir sucesso por quantas celas foram preenchidas e passaremos a medir por quantas vidas foram efetivamente protegidas e quantos crimes foram resolvidos com justiça.

 

 

A frase que foi pronunciada:
“As prisões brasileiras caracterizamse por insalubridade, superlotação, confinamento permanente, falta de investimentos governamentais, violência de todo tipo; entre esses, maus-tratos e torturas.”
Pastoral Carcerária (CNBB)

 

História de Brasília
Anuncia-se para terça-feira a vinda do sr. João Goulart. Todos os dias, o serviço de imprensa do Palácio do Planalto
dá uma nota e desmente outra. Informação ao público só deve ser dada quando verdadeira. (Publicada em 13/5/1962)