Ter identidade histórica ou não. Eis a questão.

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VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)

Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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Foto: Mré Gavião | Ascom MPI

 

A lista de ataques a nichos culturais, onde uma variedade de povos, ao longo dos séculos, armazenavam seus conhecimentos técnicos e culturais, sobretudo com o avanço da escrita, é extensa e tem contribuído a seu modo para apagar e tornar tênues muitos conhecimentos, pesquisas, e textos que seriam de enorme importância para todos e, quiçá, para um melhor conhecimento de nosso mundo atual. De lá para cá, a estratégia de destruir a cultura daqueles que são alvo de dominação nunca deixou de existir e, por um motivo simples: trata-se ainda de um método de grande eficácia e que rende resultados aos conquistadores.

Ao longo dos últimos cinco mil anos, desde que surgiram as primeiras civilizações conhecidas no Vale dos Rios Tigre e Eufrates, na chamada Mesopotâmia, a memória cultural, legada a outros povos, tem sido o fator preponderante para o lento e progressivo desenvolvimento da humanidade. Sem essa herança, por certo, estaríamos ainda praticando a caça e a coleta de alimentos e nos abrigando em cavernas naturais.

Há aqueles que acreditam ainda que sem a transmissão desses conhecimentos técnicos e culturais, feitos por nossos ancestrais, a raça humana poderia até ter desaparecido da face da Terra. Tal é a importância desse processo para a sobrevivência de nossa espécie. Desde cedo também, muitos povos aprenderam que a melhor tática para dominar uma nação, eleita como inimiga, era destruir-lhes primeiro seus traços culturais, tornando-os sem identidade histórica e, portanto, esvaziados de alma e à mercê dos conquistadores e de seus costumes.

A destruição da biblioteca de Alexandria em aproximadamente 48 a.C, consumida por um gigantesco incêndio, durante a guerra civil romana, se constitui, por suas características simbólicas, um marco e um exemplo histórico que dá início a essa estratégia de guerra que visa conquistar outros povos pela destruição de suas bases culturais, varrendo do mapa quaisquer traços que possam ligá-los ao passado e as suas memórias.

Do processo de aculturação, quando a cultura de um povo é modificada pela aproximação de outra mais forte, até o chamado etnocídio ou genocídio cultural, quando a destruição de qualquer traço remanescente de cultura passa a ser o método empregado em larga escala. Ao longo do tempo essa tem sido a medida empregada pelos tiranos em toda parte e lugar. O Brasil, por se estabelecer, desde o século XVI, como o país, por excelência, onde três culturas, de três continentes distintos, vieram a se amalgamar para o surgimento do que seria uma nova civilização, é um bom exemplo desse processo que vai da aculturação ao etnocídio.

Embora a expressão etnocídio seja recente, surgida por volta de 1943, o processo de aniquilamento de outra cultura tem sido usado com muita frequência, à luz do dia e bem debaixo dos olhos de todos. Não se enganem, até mesmo o desleixo proposital das autoridades públicas, a quem é atribuído, inclusive a obrigação de cuidar dos diversos centros culturais, podem, muito bem, ser enquadrado como crime.

Só que estamos no Brasil, um país surreal, onde o que menos as autoridades possuem, é responsabilidades com o patrimônio público, ainda mais quando esse patrimônio é formado pela memória cultural. Em país algum desenvolvido, a sequência, quase ininterrupta de sinistros de toda a ordem que vêm consumindo nosso patrimônio artístico e cultural, seria aceita como normal e sem a punição exemplar dos responsáveis, diretos e indiretos. Há muito se sabe que um povo sem cultura, é um povo sem um futuro decente pela frente. A não ser que esse futuro seja formado por escombros e cinzas do passado.

Quando na noite de 10 de maio de 1933 os nazistas e seus simpatizantes promoveram uma grande queima de livros em diversas praças públicas espalhadas por várias cidades alemães e simultaneamente, sabiam muito bem o que estavam fazendo e com que propósito final. Essa limpeza dos bancos de memória, através da destruição da literatura, incitada até pelos diretórios acadêmicos de estudantes, visavam a “purificação radical” do espírito, libertando-os da alienação.

Onde se queimam livros e a cultura, de certo são queimados também os homens, sobretudo os livres, diria o filósofo de Mondubim. Quando se verifica entre nós a quantidade de prédios históricos, que abrigavam inestimáveis tesouros de nossa cultura e que foram totalmente consumidos pelo fogo e pelo descaso, dá para pensar que alguma força maligna possa estar por detrás dessas tragédias.

A lista é imensa e vergonhosa. Do Museu Nacional, na zona Norte do Rio de Janeiro, que veio à baixo junto com mais de 20 milhões de itens da nossa história, passando pelo o Teatro de Cultura Artística de São Paulo, pelo Instituto Butantã, Memorial da América Latina, Museu de Ciências Naturais da PUC de Minas Gerais, Centro Cultural Liceu de Artes e Ofícios, Museu da Língua Portuguesa, a Cinemateca Brasileira em 2016 e agora, em 2021, depois de sofrer com alagamentos severos, compõem essa triste relação do descaso e da desmemória .

Pior é que para todos esses acontecimentos trágicos para os brasileiros, não se ouviu nem uma palavra ou explicação plausível. A esses destroços se juntam as dezenas de galerias de arte, de teatros e outros espaços públicos de cultura, fechados e abandonados. Todo esse acervo e edifícios, tornado sucatas, formam o retrato acabado de uma nação, cujo os governantes, na melhor das hipóteses, não ligam para aspectos da cultura, isso quando não tramam para simplesmente destruí-la, sob os mais inconfessáveis pretextos.

 

A frase que foi pronunciada:

“A arte é o mel armazenado da alma humana.”

Theodore Dreiser

Fotografia de Bettmann / Getty

História de Brasília

O que houve, deputado, e o senhor sabe mais do que ninguém. Foi o sabor dado à água pelo material de impermeabilização que por sinal é inofensivo. (Publicada em 15.04.1962)