Pelo olhar de Carl Jung

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VISTO, LIDO E OUVIDO, criada desde 1960 por Ari Cunha (In memoriam)

Hoje, com Circe Cunha e Mamfil – Manoel de Andrade

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(Foto: Reprodução)

 

Quando a situação política decorrente de uma sequência sem fim de escândalos que vão vindo à tona parece conduzir o país ao caos, as análises meramente políticas já não conseguem mais explicar o que de fato ocorre. Quando isso acontece, um dos caminhos possíveis a ser percorrido ruma direto para a seara da psicologia — no caso aqui da psicologia analítica, criada por Carl Gustav Jung (1875-1961).

Criador do conceito de sombra, ele dizia que todos nós abrigamos aspectos de nossa personalidade que preferimos não reconhecer: impulsos, desejos e contradições que não se encaixam na imagem que construímos de nós mesmos. Essa “sombra” — rejeitada e projetada no outro —se torna um mecanismo perigoso quando não é reconhecida.

Na política, ela se manifesta como moralismo seletivo, discursos públicos dissonantes das práticas privadas e, principalmente, como a tentativa inconsciente de destruir aquilo que mais se teme dentro de si. A teoria da sombra de Jung ilumina com precisão os comportamentos contraditórios e, muitas vezes, destrutivos que vemos com frequência no campo político.

A política, sendo o palco por excelência da projeção coletiva, revela com nitidez como indivíduos e grupos negam aspectos indesejados de si mesmos e os projetam sobre os adversários. O resultado é o moralismo inflado, a hipocrisia institucionalizada e o ódio como forma de autodefesa psíquica. O político que combate “a corrupção dos outros” enquanto lucra em silêncio com esquemas próprios; o juiz que julga “em nome da moral”, mas negocia bastidores com grupos de interesse; o cidadão que clama por justiça, mas aplaude a arbitrariedade contra quem pensa diferente — todos encenam o drama da sombra projetada, incapazes de reconhecer suas próprias ambivalências.

Jung alertava que, quando a sombra não é integrada, ela domina o indivíduo de forma inconsciente. No coletivo, isso gera movimentos persecutórios, polarizações extremas e um estado constante de guerra simbólica, onde a busca por um inimigo externo substitui o enfrentamento das próprias contradições. A política torna se, assim, um teatro de purificação ilusória, onde ninguém se salva porque ninguém olha para dentro.

Esse conceito é essencial para compreender não apenas o comportamento de certas lideranças políticas atuais, mas também explica o comportamento da massa que apoia essa estratégia, que facilmente transfere para o outro (o opositor, o corrupto, o traidor, o “inimigo do povo”) as falhas que se recusa a admitir em si mesma. Nesse ponto, a psicologia analítica ensina que, se a sombra não for reconhecida, não haverá amadurecimento nem no indivíduo nem na democracia. Como escreveu Jung, “não se torna iluminado imaginando figuras de luz, mas tornando consciente a escuridão”.

A associação entre o conceito junguiano de sombra e a retórica política “acuse-os do que você faz” — atribuída a táticas de propaganda de regimes autoritários e amplamente usada por setores da esquerda e da direita — revela uma operação psicológica profunda: a projeção da sombra coletiva como estratégia de manipulação. A frase “acuse-os do que você faz” expressa bem essa tática em que o discurso se torna um espelho invertido: aquilo que é praticado às escondidas é denunciado ruidosamente como sendo feito pelos outros. Essa inversão tem um efeito duplo: confundir o debate público, deslocando o foco e dificultando a responsabilização. Proteger o ego coletivo, preservando a autoimagem moral do grupo.

No campo contemporâneo de batalha, isso pode ser observado, por exemplo, quando: ataca-se o “autoritarismo” de adversários enquanto se tolera ou até promove o controle ideológico em instituições; denuncia-se “golpes” e “ameaças à democracia” ao mesmo tempo em que se instrumentaliza o Judiciário para fins políticos; erige-se a bandeira da “tolerância”, mas com práticas intolerantes a vozes dissonantes. Essa estratégia torna-se ainda mais poderosa quando combinada com um discurso moralizante. A sombra projetada nos adversários não apenas justifica a própria agressividade, como permite ações extremas em nome de uma suposta justiça.

Assim, a luta política se transforma em uma guerra de extermínio simbólico, onde o outro não é um adversário legítimo, mas um reflexo do mal a ser eliminado. Quando a política opera sob o domínio da sombra, não há diálogo, apenas projeção. A verdade não importa, apenas a manutenção da imagem idealizada, ou as narrativas. E, como disse Jung, “quanto maior a luz, maior a sombra”. Quanto mais moralista o discurso, mais obscuras tendem a ser as intenções ocultas por trás dele.

 

A frase que foi pronunciada:
“Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”
Carl Jung

 

História de Brasília
Chegaram ao edifício do Ministério da Fazenda 12 malas e dois sacos cheios de processos, num total de quase 400 quilos. As pilhas aumentam e não há funcionários para os despachos rotineiros. (Publicado em 3/5/1962)