POR PAULO SILVA PINTO
O economista Maílson da Nóbrega construiu uma sólida carreira no serviço público federal, que chegou ao topo como ministro da Fazenda no governo Sarney (1985/1990). Começou, então, uma nova vida, como consultor e pesquisador acadêmico. É uma das referências no conhecimento da obra da escola que analisa a economia a partir da força das instituições. Elas têm funcionado muito bem no Brasil, na avaliação do economista, que vê, no processo de impeachment, a prova disso.
Maílson relata com orgulho as contribuições que fez como técnico, mesmo tendo atuado em um período conturbado, que o país não vê com saudades. Trabalhou, por exemplo, na extinção da conta movimento, que permitia ao governo gastar de forma ainda mais descontrolada do que hoje. A mudança é considerada um marco no avanço das contas públicas, no mesmo patamar da Lei de Responsabilidade Fiscal.
O Brasil precisa de novos avanços significativos como esse, incluindo o teto para os gastos públicos e a reforma da Previdência, alerta o economista, mas sobretudo o fim das vinculações, que ele considera uma conspiração contra o Congresso. Nesta entrevista, ele explica por que acha que o país pode melhorar, sem deixar de assinalar as grandes dificuldades previstas nesse percurso.
Qual sua avaliação do governo interino?
A maioria das pessoas que integram a equipe econômica tem uma base acadêmica invejável. Evidente que isso não é tudo. Tem o Congresso. As medidas vão contrariar interesses muito poderosos. Não será fácil aprovar a principal, o teto para os gastos. Ela é correta, necessária, mas insuficiente, pois dependerá de outras regras para acelerar a queda da relação entre dívida pública e PIB (Produto Interno Bruto), que está em 67% e poderá chegar a 100% em cinco anos. O governo tem que se preparar, não apenas para enfrentar a oposição formal no Congresso, mas de vários grupos. No caso da educação e saúde, a regra não retira recursos, mas estabelece um crescimento pela inflação e não mais como uma parte da arrecadação.
O que deve ser prioritário?
O teto só vai funcionar se acabar com a vinculação de gastos da saúde e educação à receita. Do contrário, esses gastos vão competir com os de conservação de estradas, com o Bolsa Família, o mais eficaz programa social que existe no Brasil. E também sacrificará investimentos do setor público, que hoje são de apenas 2% do PIB. Nos anos 1970, já chegaram a 5%, o mesmo que se investe na China hoje. No caso das vinculações de receita, é sempre bom lembrar que Jabuti não nasce em árvore. Se está lá, é porque alguém botou.
Quem botou?
Há muitos grupos de interesse. Eu estava no governo quando a primeira vinculação foi aprovada, em 1983, a emenda do então senador João Calmon, que vinculou 13% dos impostos federais, estaduais e municipais à educação. Isso foi substancialmente ampliado na Constituição de 1988: 18% no governo federal e 25% em estados e municípios, e recebeu impulso adicional com a insana regra de destinar 10% do PIB para a educação. Poucos países gastam tanto assim. Uma parcela substantiva da sociedade brasileira comprou essa ideia, que nenhum país relevante adota.
Por que é ruim?
É conspirar contra a própria função do Congresso. A evolução institucional que levou às democracias dos séculos 19 e 20 começou por questões orçamentárias, fiscais. A vinculação de receita a um determinado gasto é desprezar isso. Decide-se hoje pelos parlamentos de amanhã, estabelecendo-se uma prioridade para sempre. Será que daqui a 50 anos não haverá outra, por exemplo, o idoso? A regra castra uma função nobre do parlamento.
Por que os brasileiros defendem a vinculação?
Isso tudo teve origem lá nos anos 1980, quando se construiu a ideia de que o acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional) foi feito para eliminar os gastos sociais. Isso nunca foi comprovado, mas ficou. Há pessoas de alto gabarito no Brasil que defendem isso. Pessoas com quem eu converso, e que dizem que o Congresso não sabe estabelecer prioridades. Eu acho que isso é uma coisa grave, até porque não é o Congresso que propõe o Orçamento. O Congresso pode emendar, mas as prioridades partem do Poder Executivo. Se fizer uma enquete entre os próprios parlamentares, a maioria vai defender vinculação. São favoráveis à autocastração, porque atendem às pressões do eleitorado, à visão cultural que permeia a sociedade brasileira sobre esse assunto.
É porque a credibilidade do Congresso é baixa?
Nas nossas origens ibéricas, de patrimonialismo, as finanças do rei se confundiam com as finanças do país. No fundo, até hoje é assim. O parlamento no Brasil é autor de inúmeras pautas bomba, enquanto que, nos países que evoluíram nesse campo, caso dos Estados Unidos, o parlamento é a grande fonte de responsabilidade. Aqui, se ele puder, dobra a despesa pública. Um conceito elementar de finanças é a restrição orçamentária: existe limite para gasto. O Congresso brasileiro ignora solenemente essa regra. Mesmo assim, acho que lhe cabe tomar decisões.
Vincular não garante gastos no que é prioritário para a sociedade?
A experiência brasileira mostra que, na medida em que os recursos são garantidos, o potencial de desperdício é muito grande. No período do PT, os gastos com educação praticamente dobraram. O Brasil continua na rabeira das avaliações internacionais. Houve aumento do acesso, mas a qualidade não melhorou, principalmente no ensino fundamental.
A crise em que estamos mostra falha das instituições?
Não. As instituições não garantem as melhores escolhas, nem os melhores governos. Elas criam os mecanismos para detectar os erros e o ambiente para as correções de rumo. Incluem o controle social e político, os mercados, que exercem o papel de precificar isso e disciplinar o governo. No momento em que a S&P (Santadard and Poor’s) eliminou o grau de investimento, no outro dia,o governo anunciou uma série de medidas, reagindo àquela decisão. O processo de impeachment é a demonstração do funcionamento das instituições, exercendo seu papel de detectar que um governo desastroso, que teria cometido crime de responsabilidade, deve ser afastado definitivamente. Se as instituições, além de tudo, garantissem o melhor governo, estaria decretada a felicidade geral.
Algo piorou?
Acho que houve uma deterioração institucional no governo do PT quanto ao ambiente de negócios. Isso piorou a produtividade, o potencial de crescimento, gerou pressões inflacionárias. Um exemplo foi a desastrada intervenção da presidente Dilma no setor elétrico, violando regras consolidadas. Piorou a governança na Petrobras, que permitiu montar um processo sistêmico de corrupção, inédito no Brasil. Mas as instituições que garantem o controle do governo estão intactas. O Brasil tem características de uma democracia consolidada porque tem imprevisibilidade do resultado das eleições, é um sistema competitivo. Tem uma imprensa livre e independente e que, como disse a revista The Economist, é também competitiva e agressiva. O país só tem dois rivais no campo institucional na América Latina: Chile e Uruguai. E, saindo daqui, entre os emergentes, só a Índia. Isso gera a expectativa de que o país vai corrigir os rumos e pode retomar o processo de crescimento.
Mesmo assim, crescemos menos do que todos os outros países. Por quê?
O Brasil teve uma queda de seu potencial de crescimento. É sempre bom lembrar, como diz o Paul Krugman (Prêmio Nobel de Economia em 2008), que a produtividade não é tudo na economia, mas é quase tudo. Explica, na maioria dos países, até 80% ou mais da taxa de crescimento econômico, e, nesse ponto, nós tivemos uma catástrofe. A indústria teve produtividade negativa. Só um segmento avançou, o agronegócio. Tudo isso foi resultado do desastre de gestão do PT, particularmente do governo Dilma, com a queda da taxa de investimento. A queda de incentivos à inovação, e sobretudo o aceleramento da piora do sistema tributário, hoje a principal fonte de deficiências. O ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) tem regras que mudam cinco vezes por semana. Isso gera custos. O Brasil é o país em que as empresas têm mais pessoas trabalhando em questões tributárias. A empresa tem de saber como é a regra de cobrança do ICMS nos 26 estados e no Distrito Federal.
Há outros itens em que houve piora?
Há também a deterioração da infraestrutura. O PT levou sete anos para se convencer de que precisava fazer concessões de rodovias. E, quando fez, piorou a situação com a ideologia, ao tentar determinar a taxa de lucro. Nos casos em que isso se tornava inviável, o governo deu, por fora, os subsídios. Tudo isso gerou um conjunto amplo de ineficiências. Hoje há um razoável consenso de que o potencial de crescimento não passa de 2% ao ano. Se o país crescer mais, começará a gerar desequilíbrios novamente. Daí, a necessidade de reformas estruturais.
Quais reformas precisam ser feitas?
É quase uma lista de supermercado. Todo mudo sabe o que fazer: tributária, previdenciária, trabalhista. Nós temos uma legislação trabalhista do tempo em que não existia nem mesmo máquina de escrever elétrica. Hoje, há uma transformação estrutural do emprego em todo mundo. As pessoas trabalham em casa, há cada vez mais terceirização. E o Judiciário brasileiro está preso à legislação fascista de Getúlio Vargas e à ideia de que o trabalhador é hipossuficiente, não sabe negociar. O sistema estimula o conflito. O Brasil teve no ano passado 4 milhões de ações trabalhistas. O Japão teve 3 mil. O TST (Tribunal Superior Eleitoral) baixou uma súmula segundo a qual é proibido terceirizar a atividade-fim. Nenhum país fez isso. É outra jabuticaba. No Centro-Oeste, é comum a pulverização por avião. Por essa regra, cada propriedade tem de ter seu avião e piloto, sua colheitadeira. Em todo o mundo se formam empresas especializadas para esses serviços.
Isso vai ser alterado?
Não agora. O governo Temer é de transição. Não tem capital político para enfrentar os grupos de interesses que atuam há 80 anos, que têm grande capacidade de vender suas ideias. É tarefa para um governo eleito.
Mas alguém vai colocar isso na plataforma eleitoral?
A experiência mostra que, mesmo que não coloque isso na plataforma, a eleição gera capital político e capacidade de articulação. O Temer, 15 minutos antes da posse, estava formando o governo. É diferente de alguém que, eleito, tem um mês e meio para isso. Embora o PSDB tenha colocado nos seus fundamentos para aderir o governo a simplificação do sistema tributário, uma ideia genérica com a qual qualquer um concorda, no momento em que o governo fizer uma proposta para mudar o ICMS, todos os governadores do partido vão ser contrários.
Por que o sistema é tão ruim?
O país foi pioneiro ao adotar um imposto de valor agregado, mas cometeu um erro de origem, que foi dividir o tributo em duas partes, uma estadual e outra federal. Até a Constituição de 1988, havia harmonização das regras. Os governadores não podiam alterar regras. Então se liberou geral, com a ideia de que os governos militares haviam castrado os estados. O sistema virou um brinquedo na mão dos governadores. Fiz um estudo para o McDonald’s. Eles pagam ICMS de 18 maneiras diferentes no Brasil.
Temer pretende priorizar o pacto federativo. Isso não resolve?
Não. Toda vez que se fala em pacto federativo no Brasil, tem de se tomar cuidado. Isso sempre esteve associado à transferência de recursos da União para os estados e municípios, sem a transferência de responsabilidades. No fim do governo Geisel, o Fundo de Participação dos Estados era de 10% do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e do IR (Imposto de Renda). No fim do governo Figueiredo (1979/1985), já era 24%. No início do governo Sarney, 33%. Na Constituição, 47%. E agora está em 49%. E mais 10% do IPI vão para compensar supostas perdas com as exportações. O governo hoje fica com 34% do IPI. Criar a contribuição, que não é dívida, foi a consequência natural. Eu era ministro da Fazenda quando foi feita a primeira, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), já que a Constituição havia criado uma série de despesas. Os 5 mil prefeitos do país se acostumaram a ir todo ano para Brasília e tomar um pouco mais da União. E grande parte dos municípios seriam inviáveis sem repasses. Existem só por interesses locais.
Quando estava no governo, o senhor tentou barrar isso?
Eu era secretário-geral do ministro Bresser (Pereira) na Fazenda e escrevi um artigo contra a partilha. Fui considerado persona non grata por várias assembleias legislativas. Deputados nordestinos me consideraram apátrida. Como um paraibano poderia ser contra a transferência de recursos para os estados mais pobres? A ideia era que isso acabaria com os governadores e prefeitos de pires na mão em Brasília. Mas não acabou. Pelo contrário: eles se deram conta de que, caso se mobilizem, vão encontrar um Congresso receptivo. Quando se trata de transferir dinheiro para estados e municípios, não há esquerda e direita. Um pacto federativo só tem sentido caso se discuta antes a despesa. Há uma visão no Brasil de que é preciso descentralizar as políticas públicas. Mas como fazer isso com gastos previdenciários, que representam 47% dos gastos da União?
A reforma da previdência será feita agora?
Pode-se até implantar a idade mínima. Mas o ‘x’ da questão está na transição. Se fizer o que defende o Paulinho da Força (deputado Paulo Pereira Silva (PSD-SP), só para quem entra no sistema, vai para o desastre. É uma transição de 40 anos. O país morre antes. Tem de ser uma transição de cinco a 10 anos.
Há chances de melhora da economia em breve?
Estamos caminhando para chegar ao fundo do poço. A economia deve se estabilizar no segundo semestre, graças ao espetacular ajuste do setor externo. O Brasil teve um deficit comercial de US$ 6 bilhões em 2014 e está caminhando para um superavit de US$ 50 bilhões. O deficit em conta-corrente, que foi de US$ 104 bilhões, está caminhando para algo entre US$ 15 bilhões e US$ 20 bilhões. O setor externo explica cerca de 2% do crescimento do PIB. Se não fosse isso, teríamos uma queda do PIB de 6%. Já começaremos 2017 com sinais muito claros de recuperação. Talvez tenhamos crescimento em torno de 1% no ano, e, em 2018, um pouco mais. A economia começa a se reanimar. Mas, antes da definição do impeachment, é muito difícil uma retomada, porque a incerteza ainda paira no ar. Embora todas as análises digam que a probabilidade de Dilma voltar é quase nula, não se pode considerar zero.
Se ela voltar, o que acontecerá?
Uma catástrofe. O nível de incerteza aumentaria gigantescamente, haveria uma fuga de capitais, dificilmente o governo conseguiria atrair talentos para gerir a crise. Tudo isso agravaria não só a gestão, mas a confiança, sem a qual não tem como recuperar, porque é fundamental para o investimento.
O senhor foi ministro em um momento conturbado por outras razões. Arrepende-se de algo que fez ou que deixou de fazer?
Não. A gente usou a expressão feijão com arroz para a política que fazíamos, que transmitia a ideia de que não havia capital político do presidente para avançar nas medidas de que o país precisava. O nosso papel era segurar as pontas e evitar um colapso. No último ano do governo Sarney, a ambição da equipe econômica era fazer com que a economia funcionasse muito próxima do normal, e evitar que um colapso prejudicasse a primeira eleição presidencial depois de 29 anos. O Plano Verão foi associado a um conjunto de medidas fiscais. O presidente não conseguiu aprovar nenhuma, só o congelamento.
O que foi proposto?
Uma lista negativa de privatizações, o que estivesse fora poderia ser vendido, e a extinção de vários órgãos públicos; uma regra de que só podia gastar o que arrecadasse; demissão de todos os 80 mil funcionários públicos não estáveis — essa, uma medida provisória, o presidente do Congresso devolveu. Tudo foi rejeitado. Collor (1990/1992) aproveitou grande parte dessas medidas, como o programa de privatizações, por exemplo. No fim do governo Sarney, depois da eleição, imaginávamos que Collor faria um congelamento. Ninguém previa o confisco. Fizemos um trabalho com a equipe da Zélia (Zélia Cardoso de Mello, ministra da Fazenda do governo Collor) de ajuste de preços para proporcionar menor desequilíbrio na partida. Reajustamos o preço da gasolina, em janeiro, em 109%. O Collor nunca reconheceu isso.
DEPOIMENTO
Ligação profissional e
emocional com Brasília
Morei 18 anos em Brasília, em dois períodos: 1970-1985 e 1987-1990. A cidade tem tudo a ver com minha trajetória. Foi aqui que comecei minha ascensão profissional, primeiramente no Banco do Brasil e depois nos ministérios da Indústria e do Comércio (1977-1979), e da Fazenda, neste, em dois períodos (1979-1985 e 1987-1990). Foi trabalhando na capital que me tornei ministro da Fazenda em um dos mais difíceis períodos da vida nacional.
Gosto muito da cidade e a vivi intensamente, apesar das dificuldades dos primeiros anos. Fui das primeiras turmas que se transferiram do Rio de Janeiro, no início dos anos 1970, quando o presidente Médici (1969-1974) decidiu consolidar a capital com a transferência definitiva de três organizações chave: o Banco do Brasil, o Banco Central e o Itamaraty.
Dois de meus filhos nasceram em Brasília. Nela moram três netos e o recente bisneto, o Daniel, filho da neta Paula. Foi aqui que fiz meu curso do Economia no CEUB. Brasília e o governo me deram a oportunidade de contribuir para avanços institucionais em áreas essenciais das finanças públicas. Liderei, entre 1983 e 1985, os estudos que resultaram no fim da “conta de movimento” do Banco do Brasil, na consolidação do Banco Central como autoridade monetária clássica, na extinção do Orçamento Monetário — uma aberração institucional — e na criação da Secretaria do Tesouro Nacional.
Brasília, 13h01min