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Para Belluzzo, choque de oferta da guerra deve ser pior do que o da pandemia

Publicado em Economia

ROSANA HESSEL

VICENTE NUNES

O Brasil está em uma situação muito vulnerável para enfrentar um período prolongado de guerra entre a Rússia e a Ucrânia, acredita o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além de a economia do país estar flertando com a recessão, a inflação está em disparada e os juros, de 10,75% ao ano, vão subir mais.

 

” O Brasil não poderia ter chegado em pior forma neste momento”, afirma. De acordo com ele, o choque de oferta que deverá ser provocado pelo conflito no Leste Europeu será pior do que o da pandemia, “dependendo da intensidade da guerra e dos setores que serão atingidos”.  Contudo, para ele, o “o Brasil não é um país perdido”.

 

Para tentar minimizar os impactos econômicos provocados pelos conflitos no Leste Europeu, ele defende programas como os adotados durante a pandemia do novo coronavírus, em que a presença do Estado foi preponderante.  No caso específico dos combustíveis, que foram reajustados em até 25% pela Petrobras na última quinta-feira, Belluzzo defende a criação de um fundo de estabilização de preços para absorver choques externos. Esse instrumento, inclusive, seria importante para preservar a política de preços da estatal, que acompanha o mercado internacional de petróleo. Não há, no entender dele, porque sacrificar a estatal. “A saída é criar um fundo de estabilização e não deixar passar o choque de preços para dentro. E esse fundo pode ser criado com imposto sobre exportação de petróleo”, diz.

O professor, de linha desenvolvimentista — linha adotada em todas as situações pós-guerras —, critica o protagonismo excessivo dos economistas no debate político e ressalta que o caminho para a retomada do crescimento sustentado da economia passa pela reindustrialização do país. Para ele, a crise atual está mostrando, mais uma vez, como o discurso liberal, que prega o Estado mínimo, está vazio. Em busca de proteção, os investidores recorreram aos títulos públicos, pois sabem que o risco de levarem calote é mínimo. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Correio que não couberam na edição impressa deste domingo (13/3).

 

Estamos diante do conflito no Leste Europeu, com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Que impactos isso pode ter para o Brasil e para o mundo?

 

Esse conflito é complicado. É muito mais complicado do que a mídia em geral está falando.

 

Por quê?

 

Quando a gente olha, de imediato, parece um conflito dos Estados Unidos com a Rússia. Mas tem processos mais profundos que, na verdade, envolvem a emergência da China. É um fenômeno muito curioso esse da China, porque, de uma certa forma, lembra bem as emergências dos Estados Unidos e da Alemanha no final do século XIX e início do Século XX, que soterraram a hegemonia inglesa. O poder econômico dos EUA e da Alemanha não pode ser entendido sem ver a forma como a Inglaterra se relacionou com eles, como uma potência industrial mercantil. Isso é muito parecido com o que aconteceu com os Estados Unidos após o reconhecimento da China como país considerado confiável e democrático com (Richard) Nixon (ex-presidente dos Estados Unidos), em 1972. A partir daí, a China começa a fazer reformas, e, logo depois, os EUA promovem a abertura financeira e comercial. A China foi a grande beneficiária da abertura financeira do ponto de vista do investimento estrangeiro direto. E, nesse mesmo movimento, o Brasil perdeu o protagonismo. Naquela época, o país era o mais industrializado entre os ditos, hoje, emergentes, e foi perdendo posição para a China, que conseguiu se transformar em uma potência mundial. Eu diria que a economia da China é a mais poderosa do mundo. E é isso que está perturbando um pouco a visão e o sentimento dos Estados Unidos, que estava habituado com a construção da hegemonia no pós-guerras.

A China, agora, tem uma participação na produção manufatureira global que chega a 29%, enquanto os EUA têm 18% e o Brasil, 0,97%. Essa transformação é importante e não podemos desconhecer que isso está no joint statement assinado pela Rússia e pela China na abertura das Olimpíadas de inverno, que mostra que a China está articulada com a Rússia, ou vice-versa, e isso tem uma importância econômica muito grande. Eu não estou torcendo para nenhum lado. Estou tentando analisar as relações de força que estão amparadas em relações econômicas. Uma das questões centrais do poder norte-americano é o poder do dólar. Precisamos ficar muito atentos para olhar os componentes estruturais desse conflito que vêm desde o fim da União Soviética e da emergência da China como potência econômica e regional, e, além disso, desenvolvendo um projeto de expansão da rota da seda, muito bem dosado. Não estou fazendo juízo de valor.

 

Mas como fica o Brasil nesse contexto global de guerra?

 

Na verdade, temos que admitir que o peso do Brasil na economia mundial diminuiu muito a partir dos anos 1980, com a crise da dívida externa. E isso se acentuou muito com as políticas econômicas que foram levadas a cabo no período seguinte, nos anos 1990, depois do Plano Real. Quando eu falo isso, perguntam se eu sou contra o Plano Real que acabou com a hiperinflação. Eu respondo que não se trata de ser contra ou a favor, trata-se de analisar. Na gestão do Real, sofremos muito com a taxa real de juros (Selic) de 22% até 1998 e a valorização do dólar. Não se pode explicar o declínio brasileiro sem compreender esse fenômeno. O Brasil deixou de ser um protagonista importante, um receptor de capitais. Agora, o que está entrando, é capital de portfólio. É a arbitragem de câmbio e juros e dos preços dos ativos na Bolsa. Mas é uma operação puramente financeira. Vocês têm uma ideia de um novo investimento estrangeiro de construção de fábrica nos últimos anos? Eles só compram um ativo, empresas preexistentes. Isso é típico de um capitalismo que está financeirizado no mundo inteiro.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, está tentando reverter essa tendência, assim como os europeus, em seu programa de facilitação de investimentos. Mas a verdade é que isso ainda está no início. E, no caso do Brasil, o país está em uma situação em que sofreu uma regressão industrial. Não só porque perdeu muitos setores, como da informática, que estava começando a construir, como não conseguiu incluir os setores da quarta revolução industrial. Portanto, quando se fala em reindustrialização, essa tarefa é muito mais complexa do que foi nos anos 1950, com Juscelino Kubitschek, quando o capital estrangeiro veio aqui e foi usado para articular a indústria nacional, como a automobilística, de autopeças, de bens de capital. Essa tarefa, agora, vai exigir, sobretudo, atenção para essa mudança da natureza da indústria. Um dia desses eu vi uma pessoa, amigo meu até, falando que o mundo está vivendo um período de desindustrialização. Não é isso. O mundo está vivendo um período de hiper industrialização.

 

Por quê?

 

Porque todas as atividades, serviços, agricultura, estão se tornando industrializadas, e a dinâmica delas é movida pelo avanço tecnológico. Olha a agricultura avançada no país, com colheitadeiras, semeadeiras, sistemas de irrigação. Tudo isso é muito industrializado, assim como serviços. É muito diferente do que vivemos no passado. O Brasil está em uma situação subordinada e teve a má sorte de contar com, digamos, sobretudo depois dos anos 2015 e 2016, de forte retração, com políticas econômicas ditas liberais. Francamente, não queria pensar tão mal do liberalismo econômico, que é uma coisa realmente deplorável, primária, e eu chamo de liberalismo das cavernas. Até o jurista (Jeremy) Bentham, um dos pais do liberalismo, advogou a estatização do crédito para poder desenvolver no começo do século XIX. Um liberal viu uma oportunidade. Depois da Segunda Guerra Mundial, todos os países olharam a possibilidade do capitalismo se renovar e se transformar em um sistema inclusivo e com muita capacidade de expansão. O que eu quero dizer é que o Brasil não é um país perdido, de maneira nenhuma, mas precisa de uma outra energia.

 

E qual é essa outra energia?

 

Essa energia, se vocês me permitem, primeiro, vou fazer uma consideração. Eu fico muito incomodado com a proeminência dos economistas no debate político, porque os economistas deveriam, como diria (John Maynard) Keynes, apenas ter um protagonismo de um barbeiro, que cumpre a sua tarefa, porque as decisões são políticas. Esse protagonismo excessivo dos economistas revela o empobrecimento da sociedade. Os economistas devem ser chamados para opinar, para ajudar, para construir. Não pode entregar esse protagonismo, sobretudo, as decisões apenas, dada a complexidade do sistema econômico. (Joseph) Schumpeter, Keynes e (Karl) Marx tinham visão dessa complexidade. O debate econômico atual parece um coro gregoriano. É o teto de gastos, é o risco fiscal, e ninguém é capaz, por exemplo, de relacionar os fatores externos e os movimentos do fluxo de capitais com a arquitetura monetária internacional, que são muito importantes. Veja só: o Brasil tem US$ 356 bilhões de reservas e a Rússia, US$ 630 bilhões. Isso nos coloca em uma posição diferente e distinta de outros países, por exemplo, da Argentina, que tem uma vulnerabilidade externa permanente desde os anos 1930. O Brasil teve oscilações e fez essa asneira de se entupir de dívida externa. E todo mundo hoje sabe que é um risco enorme, que desabou nos anos 1980 e que nos levou a essa situação atual. Estamos pagando o preço por essa decisão, ainda que tenhamos revertido, em parte, por causa das reservas que nos deixa em uma posição mais confortável. Mas o projeto de política econômica tem que respeitar, da maior maneira possível, a vontade popular. Tem que ser baseado nos desejos da população, como melhorar sua vida, sair dessa situação precária em que está todo mundo metido. Está muito claro o que se precisa fazer na política econômica imediatamente. É salvar essas pessoas que estão submetidas a esse padecimento. A essas dores terríveis de comer em caminhão de lixo. O que é isso? E tem mais essa: a economia, quando se coloca na posição de ciência, mas não sabe nem o que é ciência. Vamos combinar, os economistas conservadores não têm nível cultural para discutir essas questões. Eles vestem de tal maneira os sapatos, os tamancos da ciência e acham que não dá para fazer nada, porque o governo está ruim.

 

E como se faz? Qual é o caminho?

 

O capitalismo desenvolveu formas, desde o Renascimento, constituindo as instituições. Os bancos, por exemplo, que, primeiro, financiavam os reis. Vamos pegar a Inglaterra, 1694, quando foi criado o Banco da Inglaterra, que aperfeiçoou o mercantilismo. E o que o Banco da Inglaterra fez de fundamental? Começou a emitir crédito e financiar a dívida pública para permitir a transição do feudalismo para o capitalismo monetário. E não é compreensiva a revolução industrial sem duas coisas: o Banco da Inglaterra e a sua dívida pública, que virou riqueza privada. E veja o que está acontecendo agora: o sistema do mundo está correndo para títulos públicos, porque são os investimentos com mais segurança em um momento como esse. O capitalismo desenvolveu esse sistema de criação monetária dos bancos privados com supervisão do Banco Central. É uma relação público-privada que se aperfeiçoou e foi funcionando ao longo do tempo. Os bancos centrais europeu e dos Estados Unidos enfrentaram a crise financeira de 2008 emitindo moeda. Compraram os títulos públicos. O Fed (Federal Reserve, o banco central dos EUA) tem em sua carteira cerca de 50% dos títulos públicos emitidos, assim como no caso da Europa. Não vamos falar do Japão, porque ultrapassa qualquer limite. Na verdade, se o governo não exercesse essa sua faculdade, o setor de crédito privado tinha sumido, colapsado. A economia capitalista vive sempre nesse equilíbrio entre o poder do Estado emitir moeda e a capacidade dos bancos distinguirem qual é a operação mais arriscada e menos arriscada. É o público e o privado convivendo. Logo, essa história do teto de gastos é a coisa mais idiota que eu já vi na minha vida.

 

O Brasil, hoje, está mais preparado para enfrentar uma guerra ou está mais vulnerável?

 

Vou responder com a maior sinceridade. A depender da continuidade da execução dessas políticas, o Brasil vai ficar muito vulnerável e muito enfraquecido.

 

As políticas que o senhor fala são as neoliberais que vêm sendo tocadas pelo ministro Paulo Guedes?

 

Na verdade, o governo não tem política nenhuma. É uma série de promessas, de coisas que não estão se realizando. Além disso, tem uma visão da relação do Estado com o mercado que é completamente esdrúxula, sem nenhum fundamento, porque não existe oposição entre o Estado e o mercado. E existe, sim, às vezes, a contradição. E contradição não é uma coisa ruim, porque quer dizer que você está em uma passagem. Na política monetária existe, o tempo inteiro, essa contradição, e, a mesma coisa, na política fiscal. Agora, todo mundo está reconhecendo que existe uma capacidade fiscal e monetária do Estado que pode socorrer o setor privado. Na teoria econômica, no fundo, é que se cria uma defesa para evitar avanço do Estado sobre o setor privado. Mas existe uma articulação interna fundamental entre ambos desde o início do capitalismo.

 

Mas existe limite para o Estado. O que importa é a articulação entre o Estado e o setor privado?

 

Sim, mas depende. É um ecossistema onde um depende do outro. E o que interessa nesse ecossistema é que gere o que é desejado, como crescimento, criação de empregos e boas oportunidades para todos. É isso que interessa. Aí vem um e outro criticando que tem muito Estado. O que é isso? Isso é um negócio primário. Economistas que falam isso são pouco estudados.

 

O senhor acha que muito do que o Brasil está passando hoje tem a ver com essa visão equivocada de que há muita presença do Estado e economia privada de menos?

 

Seguramente. Na verdade, se fossemos rever o período de crescimento brasileiro que vem lá dos anos 1930, é uma relação permanente entre Estado e setor privado. Eu ajudei no Documento dos Oito, que foi escrito em 1979 por todos os grandes industriais brasileiros. Se você ler o documento, verá a concepção, o conhecimento, a noção que eles tinham das relações entre Estado e mercado e do projeto de industrialização brasileira. O que aconteceu nos anos 1980 e 1990 foi varrido, porque as concepções, como diria o Schumpeter, são muito importantes. Os economistas incultos são muito narrativos e não dão importância ao sentido das coisas e não veem direto a realidade. Como mostraram alguns filósofos, como (Georg Wilhelm Friedrich) Hegel, sobre o intelecto e a razão. O intelecto é quando você entra em contato com as coisas e a razão, quando você compreende as coisas. E o que vemos, é muito diferente.

 

Durante a pandemia, vimos como o Brasil estava vulnerável nessa questão de produção. O país ficou muito dependente da China e de países asiáticos, o mundo como um todo. Ali ficou claro o quanto o país errou na política industrial ao não proteger esse setor?

 

Perfeitamente. E isso não é verdade só para o Brasil. Nos Estados Unidos, o (Donald) Trump precisou importar máscaras da China produzidas pela 3M, que é americana. Na França, também revelaram as carências da indústria francesa para fornecer insumos não apenas para produtos farmacêuticos, mas também para outros aparelhos necessários para hospitais. E, no caso do Brasil, essa deficiência também ficou muito clara.

 

O país precisa de um novo programa de industrialização?

 

Nós precisamos de um programa muito abrangente, que inclua essa questão tecnológica, e, sem isso, não será possível. Tem gente muito mais capacitada do que eu para falar disso. Eu sei disso de uma maneira muito geral. Mas não tenho dúvida nenhuma de que a industrialização é importante. Tem gente que diz que a indústria não tem importância, e que produzir banana e computador é a mesma coisa. O que é importante para a indústria são as articulações por dentro da economia, porque você gera uma divisão do trabalho entre vários setores e isso tem uma estrutura que tem uma dinâmica. Quando olhamos os processos de industrialização mais recentes, como o da Coreia e o da China, vemos que eles foram supervisionados e coordenados pelo Estado.

Um dia, conversando com um alto funcionário chinês e ele me disse que, na China, quem dirige a economia são os estrategistas engenheiros. E perguntei: e os economistas? Os economistas, a gente bota aí para dar uns palpites, respondeu. Existe um problema estratégico no Brasil, que é também um problema político. Cá entre nós, sem montar um ambiente político no Congresso, no debate com a sociedade, favorável à qualidade de vida, você vai continuar prisioneiro de grupos minoritários que têm o controle das coisas. E quem tem esse controle das coisas, hoje, no Brasil, e em boa parte do mundo, é o mercado financeiro, que determina a alocação de recursos. E ele está se tornando disfuncional, porque só tem relações entre si. É preciso regular, estabelecer regras, procedimentos e criar estímulos e incentivos, como foi criado em outras ocasiões para que o mercado financeiro atue. Em uma economia capitalista, você não pode eliminar o mercado financeiro. Você tem que regulá-lo, controlá-lo e discipliná-lo, como foi feito no pós-Segunda Guerra Mundial.

 

O Brasil foi pego pela guerra no Leste Europeu com inflação alta, juros subindo e a economia flertando com a recessão. Como ficamos se essa guerra perdurar por muito tempo?

 

Essa situação de anomalia, de anormalidade, já estava posta na saída da pandemia, que foi assimétrica. Alguns setores saíram mais rápido do que outros, porque houve um choque de oferta. Vamos lembrar que, no pós-guerras, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, houve choque de oferta e controle do choque de preços criando um fundo de estabilização, não deixando passar tudo para a economia. Eu não consigo, francamente, entender como é que um governo minimamente responsável e esclarecido possa trazer para dentro os choques de preços de petróleo quando o Brasil é autossuficiente na produção de óleo cru. Mas faz o que a Noruega fez, um fundo de estabilização. Vocês viram o lucro da Petrobras (de R$ 106,7 bilhões em 2021) e não fizeram nada?

 

O que o senhor está dizendo é que tem que mudar a política de preços da Petrobras?

 

Não. Tem que, na verdade, estabilizar. Não se pode danificar a Petrobras como empresa. A saída é criar um fundo de estabilização e não deixar passar o choque de preços para dentro. E esse fundo pode ser criado com imposto sobre exportação de petróleo. Agora, que o petróleo passou de US$ 100 e querem danar a vida de todo mundo, encarecer o gás de cozinha, dos combustíveis etc.  A ideia dessa (equipe da) Economia é não mexer na política de preços. Não vou falar Michel Foucault (filósofo francês) para eles, porque vão pensar que é o ponta esquerda da França. O Foucault diz que o mercado é visto como locus da verdade, que conta a verdade na visão dos conservadores. Ele não é o lugar da Justiça, mas da verdade. Mas, no caso do petróleo, tem oferta demais, mas tem um cartel (controlando os preços). Aliás, não há nenhuma livre concorrência em nenhum setor da economia. Há um grau de concentração e de centralização de controle. Hoje em dia, 2% dos acionistas controlam 70% dos ativos financeiros do mundo. E o que eles estão fazendo? Formação de preço, de cartel.

 

Voltando para inflação, juros e recessão. Como fica o Brasil nisso?

 

Há um choque de oferta e é preciso ter estoques reguladores para o controle de preços. O mercado de derivativos era para se defender de uma situação e acabou gerando valor em si mesmo. O (Milton) Friedman (pai do liberalismo) dizia que a inflação é um fenômeno monetário. O Brasil não poderia ter chegado em pior forma neste momento. Na verdade, nós não fizemos o que eles chamam de dever de casa, que era aplainar o choque de preços, sobretudo do petróleo e das commodities, se tivesse os instrumentos, e aí poderia se fazer uma política monetária mais suave. Mas, agora, o que vai ser feito: dar uma cacetada nos juros e nas expectativas de crescimento. A economia vai patinar e vai demorar para derrubar a inflação. Diante do risco de o PIB cair de maneira violenta, acho que o Roberto Campos Neto será um pouco mais moderado do que outros banqueiros centrais. Vamos lembrar que, nos Estados Unidos, com um novo choque de oferta, o Fed pode subir a taxa de juros em 3,0 pontos, em vez de 0,25 e 0,50 ponto. Se isso acontecer, vai interromper o crescimento lá e aqui.

 

O choque de oferta que pode vir dessa guerra pode ser maior do que vimos na pandemia?

 

Pode ser maior, dependendo da intensidade da guerra e dos setores que serão atingidos.

E isso é mais inflação e mais juros?

 

Sim, mas aí seria preciso adotar os princípios de uma economia de guerra. Ou seja, tratar esses fenômenos como anômalos e danosos para a economia e adotar procedimentos de uma economia de guerra.

 

E, para isso, é preciso de um Estado mais forte, o que é questionado pelos liberais?

 

É. Mas com a situação, digamos, de conflito, de crise como essa, é melhor esquecer esse negócio. Tem outro instrumento para cuidar dessa crise? O bloqueio do Mar Negro, por exemplo, é um mega choque de oferta. Porque atinge gregos e troianos. Os que foram bloqueados e os que bloquearam.

 

O senhor acha que o Brasil vai sofrer mais do que outros países?

 

Vai sofrer se prolongarem a guerra. Espero que ela não se prolongue e chegue alguém com bom senso e ajeite as coisas. Mas eu não estou vendo essa perspectiva. O Brasil vai sofrer muito, porque tem uma dependência muito grande da importação de produtos manufaturados. E nós teríamos que nos defender com ações mais incisivas no sentido de reconstituir setores que nós perdemos. Tínhamos o projeto de uma fábrica de semicondutores, mas desmanchamos. O Brasil toma muitas decisões erradas. Quando é que vamos parar com isso? Só podemos parar com ação coletiva. Se conseguirmos eleger um grupo de dirigentes que tenha uma preocupação diferente, com uma outra visão. Isso também precisa de uma mobilização da sociedade. Ela não está mobilizada para pedir para participar das decisões e do debate público. As redes sociais não são espaço adequado para o debate, porque só têm afirmações. Por isso, a grande imprensa teria um papel muito importante desde que se desvencilhasse do unilateralismo. É muito importante o debate público, com a participação das várias forças sociais que estão comprometidas com o crescimento, porque não acredito em automatismo e nem sabedoria científica dos economistas. Se não tivermos um debate muito intenso, vai ser muito difícil sair dessa enrascada.

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Diante da conjuntura atual, olhando para o que aconteceu durante a pandemia, as soluções para a crise deixaram de lado o liberalismo. Agora, de novo, com essa guerra na Ucrânia, o senhor acha que é uma pá de cal para enterrar as teorias neoliberais?

 

Essas coisas não terminam assim repentinamente. Estamos vivendo uma crise muito profunda e muito antiga. Estamos observando movimentos de reestruturação, de recondução e de mudança na natureza das decisões. Mas isso leva tempo, porque, do outro lado, existe muita resistência ainda. Não vamos nos iludir. Essa crise, na verdade, nos proporcionou, sim, uma rediscussão muito importante do fundamento da nossa sociedade, da nossa economia, da nossa cultura, etc. Mas isso não vai se resolver do dia para a noite. Vamos ter que caminhar. Vamos ter que continuar na briga, na discussão, no bom debate, porque a ciência e o conhecimento se fundamentam na dúvida.  Eu sempre digo isso para os meus alunos. E quando você começa a duvidar de alguma coisa que te dizem com tanta certeza, você começa a descobrir os caminhos do conhecimento.

 

O Brasil enfrentou uma pandemia e pode enfrentar uma guerra com Bolsonaro no poder?

 

Olha, acho que, no caso da pandemia, vocês já sabem os resultados. A guerra, eu não sei. Se a guerra se generalizar, não sei qual é a capacidade do Brasil de se ajustar. A julgar pelo desempenho dele, e não por conta da declaração de solidariedade à Rússia, o problema de Bolsonaro é o de não compreender o que está acontecendo. Isso é muito fora dos parâmetros dele. Ele não tem capacidade de compreender nada. Ele só pula de um lado para outro. Ele vai pular do lado da Rússia. Ele precisa fazer uma avaliação no sentido de proteger o Brasil. Na Segunda Guerra Mundial, Getúlio Vargas oscilou, o tempo inteiro, de um lado para outro para criar uma defesa para o Brasil e foi ajeitando as coisas para criar uma economia de guerra. Ele negociou a base americana no Rio Grande do Norte, conseguiu a vinda da siderúrgica ao Brasil e foi se ajustando e só entrou na guerra em 1942 do lado dos aliados, conseguiu um equilíbrio.

 

A política está muito tensionada, o que é muito ruim para o setor produtivo…

 

Sim, muito ruim. Eu vejo que as coisas muito extremadas. Essas opiniões da política econômica de que o Estado não pode isso ou aquilo, é muito ruim. É preciso construir. Essa é a palavra. O que assistimos nos últimos anos foi destruir, uma desconstrução.

 

O PIB de 2021 cresceu 4,6%, segundo o IBGE. É possível afirmar que houve aquela retomada em V que o ministro Paulo Guedes fala? As projeções para 2022 e 2023 já eram ruins sem a guerra…

 

Se a economia crescesse 5%, não conseguiríamos voltar ao nível de 2013. Esse é o problema. Então, eu não sei do que ele está falando. Em nível de atividade, estamos abaixo do patamar de 2013.