ROSANA HESSEL
A portaria nº 4.975, do Ministério da Economia, que criou o teto duplex do funcionalismo está dando o que falar. Além de passar por cima da Constituição, mostra que o discurso do governo é controverso, minando ainda mais a credibilidade já abalada do ministro da Economia, Paulo Guedes, e a agenda em defesa da austeridade fiscal, de acordo com analistas ouvidos pelo Blog.
Para piorar, com essa nova portaria, o governo dá um tapa na cara dos mais de 14 milhões de trabalhadores desempregados ao conceder reajustes nada republicanos aos ministros mais próximos do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), chegando até 69%, criando um novo grupo com supersalários.
Além disso, o impacto para os cofres públicos apontado pelo Ministério da Economia, de R$ 66 milhões, é controverso e visto como uma tentativa de minimizar a má repercussão da medida, por estar abaixo de algumas estimativas iniciais. Conforme dados do Centro de Liderança Pública (CLP), por exemplo, o prejuízo para o contribuinte será maior, podendo alcançar R$ 180 milhões, neste ano.
Com esses recursos que vão agradar um pequeno grupo de privilegiados e amigos do presidente, o governo poderia comprar mais 3,4 milhões de doses da vacina da Pfizer, considerando o valor de US$ 10 a unidade do primeiro contrato assinado pelo Ministério da Saúde, convertidos ao câmbio atual. Logo, vê-se bem quais são as verdadeiras prioridades do atual governo enquanto faltam insumos para a fabricação nacional de vacinas, a única saída para uma retomada mais robusta da economia.
De acordo com a portaria, o teto do funcionalismo será calculado separadamente para cada rendimento, no caso de servidores aposentados ou militares da reserva que trabalham para o Executivo, o que permitirá ganhos equivalentes de até dois tetos. O discurso do governo, na avaliação de especialistas, está totalmente descolado da realidade que mostra que o presidente Bolsonaro está mais preocupado com a eleição de 2022 e agradar os aliados do que controlar o gasto público e Guedes está cada vez mais desmoralizado, segundo fontes do mercado.
Para o head de causas do CLP, José Henrique Nascimento, o discurso de austeridade fiscal do governo e da equipe econômica perdeu credibilidade ao mostrar incoerência, deixando de de lado a agenda das 35 prioridades, apresentadas no início do ano e que incluía o PL 6726/2016 — que trata da regulamentação do teto do funcionalismo –, e trouxe essa portaria de acumulação de salários em um momento em que o governo tenta discutir uma reforma administrativa para reduzir gastos com a folha.
“O governo está sendo incoerente e não fala da urgência de um projeto que está há cinco anos parado por falta de vontade política”, resumiu. Pelos cálculos CLP, a aprovação da regulamentação do teto geraria uma economia de R$ 2,6 bilhões por ano, dos quais R$ 1,1 bilhão por ano na folha de servidores federais. Ele lembrou ainda que a nova portaria da Economia reduz o efeito do abate-teto, que havia sido constituído em 2019, gerando uma economia anual de R$ 280 milhões aos cofres públicos.
O levantamento do CLP foi feito com base nos dados da PNAD Contínua de 2019 e revela que o universo de servidores ganhando acima do teto é pequeno em quantidade, mas faz estragos bilionários para o bolso do contribuinte. No caso do governo federal, existem 10,3 mil trabalhadores recebendo, em média, R$ 8,6 mil ao mês acima do teto do funcionalismo. Esse montante equivale a 1,03% dos cerca de 1 milhão de ativos e inativos . Nos estados, média salarial acima do teto é de R$ 9,1 mil para 13,6 mil servidores e, nos municípios, 1,3 mil trabalhadores com ganhos médios de R$ 707 acima do limite constitucional.
Para Nascimento, o governo também não mostrou coerência na aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial, que foi desidratada e perdeu grande parte do efeito na contenção do aumento de despesas da União, principalmente. “A PEC Emergencial foi destruída pelo Palácio do Planalto. E se o governo quer trazer uma discussão de uma narrativa fiscal, precisa ser mais coerente, mas isso é algo que o presidente não fala abertamente e não defende a urgência, por exemplo, da regulamentação do teto do funcionalismo, que é uma forma de reverter parte da incoerência criada com essa portaria”, pontuou
De acordo com Felipe Salto, especialista em contas públicas e diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, a existência dessa portaria mostra um direcionamento do governo para medidas que passam longe da responsabilidade fiscal. “Apesar de a decisão estar ancorada em entendimento do STF sobre essa possibilidade de o teto remuneratório ser aplicado separadamente – e não para o conjunto de aposentadoria e cargo em comissão – ela cristaliza uma prática contrária ao espírito da responsabilidade fiscal e à necessidade de contenção de despesas”, afirmou. “Parece haver dois pesos e duas medidas na gestão dos recursos públicos, se lembrarmos que o Orçamento acaba de ser sancionado com cortes importantes nas despesas de custeio de políticas públicas essenciais”, acrescentou.
No entender de Gil Castello Branco, secretário-geral da Associação Contas Abertas, a portaria criou um teto duplex, porque alguns servidores poderiam ganhar o equivalente a dois tetos, algo na contramão do discurso de austeridade fiscal que o governo tenta convencer os investidores. “Em plena pandemia, com milhões de pessoas desempregadas e outras passando fome e durante uma crise fiscal que o país está enfrentando, essa medida que permite um teto duplex, vai na contramão do que se desejaria do governo. Entendo que, do ponto de vista do cidadão comum, é uma medida completamente imoral”, resumiu. “Na prática, o teto remuneratório deixou de ser teto porque, em vários casos, incide isoladamente sobre os vínculos. Em plena pandemia, no momento de graves dificuldades fiscais, causa surpresa a criação da possibilidade de um servidor ganhar até dois tetos. O ajuste fiscal será somente em cima do barbabé?”, questionou.
O especialista lamentou o fato de a Constituição continuar sendo desrespeitada por interpretações equivocadas como a que criou essa portaria, porque sempre são criadas brechas para burlar o teto constitucional, devido à infinidade de penduricalhos e jetons criados para engordar a remuneração do servidor, principalmente, no poder Judiciário e, agora, o Executivo tenta fazer o mesmo. “É impressionante que, há 33 anos, a Constituição tenha fixado um teto para os subsídios, o qual foi sucessivamente driblado por interpretações de interesse corporativo. Para muitos, o teto virou um piso. Ainda que essas decisões, que criaram várias chaminés para o teto, possam ter algum amparo legal, são em sua maioria imorais”, criticou Castello Branco. Ele lembrou que, bastava regulamentar o teto que nada disso aconteceria. “Há regulamentações no Congresso prontas para serem votadas, mas aparentemente falta vontade política”, lamentou.
Na avaliação do especialista em contas públicas e analista do Senado Leonardo Ribeiro, “o governo está regulamentando os critérios de aplicação do teto remuneratório por portaria, criando privilégios que não se justificam ao autorizar remunerações acima do limite constitucional”. “Essa ineficiência alocativa do gasto só é possível, porque a lei é omissa. Nesse caso, o Congresso deveria regulamentar a matéria estabelecendo critérios mais rigorosos do ponto de vista fiscal”, afirmou.
Reajustes astronômicos
A medida adotada pela Economia devido às pressões do Palácio do Planalto, favorece os principais ministros do presidente Jair Bolsonaro e o próprio chefe do Executivo, que terão reajustes acima da correção 5,26% concedida pelo governo para o salário mínimo, que ficou abaixo da variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), de 5,45%. Os reajustes dos ministros vão chegar até a 69% — mais de 10 vezes a inflação oficial acumulada até abril, de 6,76%, — garantindo rendimentos acima do teto do funcionalismo, de R$ 39,2 mil por mês.
“O governo está apenas respeitando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal de Contas da União (TCU). De acordo com a decisão, o cálculo do teto vale para cada salário isoladamente, e não sobre a soma das remunerações”, informou a pasta chefiada por Guedes, minimizando o impacto da medida em uma nota, alegando que o número de beneficiados é limitado, em torno de 1 mil trabalhadores.
Com a nova regra para o teto do Executivo, o maior beneficiado pela medida no escalão é o ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, é o maior beneficiado, porque terá um reajuste de 69% sobre o valor do teto, ou seja, poderá receber, mensalmente, R$ 66,2 mil com a soma da aposentadoria e com a atual remuneração básica como ministro, de R$ 30,9 mil, sem o limite atual do teto, que ainda não foi regulamentado. A pasta também citou decisões do STF e do TCU e informou que “todos os servidores do Executivo serão abarcados pela nova medida”.