Os mortos vivos e o que a ficção pode ensinar sobre as fake news

Publicado em Economia

LUIZ CALCAGNO

 

 

O cineasta George Andrew Romero deu cara e força a um gênero cinematográfico de terror que apresenta como elemento principal os mortos vivos. O primeiro filme da série, e provavelmente o mais profundo de todos é o clássico Night of the living dead (1968), ou, em português, A noite dos mortos vivos, que coloca os protagonistas presos em uma casa cercada pelas criaturas. Ninguém sabe como começou, só que eles estão trancados e com parcos recursos para sobreviver. Sair significa juntar-se a horda. Mas não é tão simples. Os principais inimigos não são os mortos, mas, os medos e preconceitos daquele grupo confinado e obrigado a conviver.

 

 

O mais sensato dos personagens é um homem negro. Por conta da cor de sua pele, ele tem dificuldades em se fazer ouvir pelos outros. Há, ainda, um pai e uma mãe, que escondem no porão a filha contaminada pelos mortos. Uma bomba relógio do lado de dentro. Uma excelente metáfora para um sacrifício de amor, mas, também, para a hipocrisia da imagem da família que esconde aqueles que ama por serem, de alguma forma, diferentes. O inesperado disso tudo é a metáfora cair tão bem em um momento em que as fake news (que também já foram abordadas em um dos filmes de Romero – O diário dos mortos) ocupam um espaço tão grande no debate público. 

 

 

Brasileiros de diferentes realidades, cercados pelas falsas informações e brigando entre si, presos a um mesmo governo. A comparação porém, é ainda mais literal que parece. Em conversa com o Correio, o presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das Fake News, senador Angelo Coronel (PSD-BA), revelou que, para criar falsos perfis de whatsapp e disseminar os textos mentirosos, os responsáveis pelo trabalho sujo usam o Cadastro de Pessoa Física (CPF) de pessoas que já morreram e, agora, sem descanso, estão condenadas a disparar mentiras para os conturbados grupos familiares, por exemplo.

 

 

Combatendo os mortos

Na ficção de 1968, armados, um grupo de caipiras (em inglês, rednecks) conseguem controlar a situação e, por assim dizer, matar os que já estavam mortos. Na casa, porém o bando pouco sabe do que ocorreu. Eliminaram a grande ameaça, mas conservaram os medos e preconceitos, estes, bem vivos e difíceis de se combater. Na vida real, porém, a ferramenta para combater os mortos vivos é a legislação. 

 

 

Na primeira sessão da CPMI após o recesso, marcada para às 14h desta quarta-feira (5/2), o colegiado irá votar os pedidos de quebra de sigilo de perfis de Twitter e Instagram. Em sua maioria, são contas citadas pelos deputados federais Alexandre Frota (PSDB-SP) e Joice Hasselmann (PSL-SP) durante os respectivos depoimentos. Entre os perfis estão os dos integrantes do que deputados chamam de “Gabinete do Ódio”, que funcionaria no Palácio do Planalto. Há, ainda, o dos necromantes responsáveis por ressuscitar os CPFs de quem já morreu e merecia o descanso eterno.

 

 

Para coibir o assédio aos vivos e aos mortos, Angelo Coronel elaborou um projeto de lei para obrigar que a compra de chip pré-pago ocorra somente nas lojas e mediante a apresentação do CPF cadastrado na Receita Federal. A intenção é evitar o uso dos cadastros dos mortos. Nos bastidores, parlamentares cogitam tornar obrigatório, também, o uso de CPFs para a criação de perfis em todas as redes sociais, para facilitar o rastreio de milicianos digitais e disseminadores de fake news. A ideia seria, inclusive, forçar um recadastro dos perfis que não registraram o CPF dos usuários.

 

 

E o PT?

Deputados votarão, ainda, requerimentos de pedido de informações ao Ministério Público Federal sobre as investigações da Lava Jato. O caso em questão é o suposto uso de dinheiro da Petrobras no pagamento de R$ 200 mil para a reativação do perfil “Dilma Bolada”, que apoiava a ex-presidente Dilma Rousseff. Os governistas da CPI também querem informações do Twitter, Facebook, TSE e MPF sobre o “Mensalinho do Twitter”, em que, nas eleições de 2018, candidatos do PT teriam pago para que influenciadores digitais para fazerem postagens favoráveis às candidaturas sem, no entanto, especificar que se tratava de campanha eleitoral.

 

 

O último item da pauta é um requerimento do próprio Angelo Coronel (PSD-BA). Com base em um estudo da Sociedade Brasileira de Imunizações, o presidente da comissão quer que o Google e o Facebook enviem informações de registro, acesso, postagens e demais dados de perfis e sites apontados em como grandes disseminadores de Fake News sobre saúde no Brasil. Esses mesmos grupos são suspeitos de promover ataques contra temas de saúde pública mas, também, a adversários políticos.

 

 

O presidente da CPMI tem realizado um esforço constante para evitar a polarização dos trabalhos, contra a direita ou contra a esquerda. Trabalha para evitar que a comissão se transforme na mansão cercada de mortos vivos do filme de Romero, com dois extremos se digladiando, cercados pelos mortos vivos transmissores de fake news. Em ano de eleições municipais, em que serão eleitos a maioria dos políticos do Brasil, o esforço se parece muito com o realizado na ficção, para deter uma doença em que é muito difícil eliminar os vetores e as chances de contaminação são de quase 100%.