O cálculo da irresponsabilidade, parte #2

Publicado em Economia

LUIZ CALCAGNO

 

Alertado por autoridades e questionado insistentemente pela imprensa sobre a gravidade da pandemia de coronavírus, o presidente da República fez uma das coisas que sabe fazer de melhor: rejeitou a ciência. “O povo tem que ir pra rua trabalhar e deixar o vovô e a vovó em casa”, pois “o número de óbitos por pessoas abaixo de 40 anos é insignificante”. Mas, o presidente não parou por aí. “A realidade está aí e, para 90% da população, isso vai ser uma gripezinha ou nada. Nós vamos calcular 10% que vai ter algo um pouco mais grave, por assim dizer. É uma minoria, e naquele grupo de risco. E o que é o grupo de risco? Acima dos 60 anos”, disparou Jair Bolsonaro. A fala é de 27 de março, quando 92 pessoas tinham morrido em decorrência do coronavírus. Hoje, um mês e um dia depois, 5.017 brasileiros morreram em decorrência da doença.

 

 A afirmação completou 32 dias com um aumento de 5.353% no número de parentes mortos nesta segunda (27/4). E não se pode afirmar que o Brasil vivia em uma situação diferente, apesar das sucessivas crises políticas que o governo promoveu nessas curtas quatro semanas. E mais, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (agora ex), já alertava para o perigo da pandemia. Não bastasse isso, o Brasil já recebia as trágicas notícias das mortes na Lombardia, na Itália, onde a falta do isolamento social se provou a pior das escolhas para a população e foi preciso aconar o Exército para levarem o corpo dos mortos para enterrá-los ou cremá-los.

 

“Será que uma pessoa, um jovem morreu na… Não sei aonde, qual o país, tenha 10 anos de idade… Uma pessoa não pode entrar em estatística. Ela podia ter outros problemas. É natural. Às vezes a pessoa já nasce com problema sério de saúde”, afirmou Jair Bolsonaro em entrevista ao programa Brasil Urgente naquela sexta-feira (27/3). O descaso do presidente foi flagrante a ponto de transbordar até mesmo em pronunciamentos nacionais. Bolsonaro escolheu o caminho do embate e da crise ainda que diante de uma doença com potencial de matar milhares de brasileiros em um curto espaço de tempo e de dissolver economias.

 

Na data não tão remota, o governo havia lançado a campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, a mesma que levou a cidade de Milão, na Espanha a um cenário parecido com o da Lombardia. Campanha que, dias depois, a comunicação do governo federal negaria ter disparado. Em coletiva no Ministério da Saúde, questionado sobre o anúncio do governo, o então secretário-executivo da pasta, João Gabbardo, se posicionou. “Estamos na frente de uma casa que está incendiando. Nós temos alternativas para combater este incêndio. Nossa função nessa história é retirar o máximo de pessoas lá de dentro. Vocês não fiquem esperando que o Ministério da Saúde jogue um palito de fósforo ou coloque oxigênio para aumentar esse fogo. Não tentem forçar o ministério a incendiar uma coisa que já está na nossa frente”, respondeu.

 

Vejamos, agora, mais algumas falas de Bolsonaro. Sobre as medidas de isolamento que os governadores, então, firmes no combate, decretaram, o presidente afirmou que eram “exageradas”. “Tá faltando consciência por parte de algumas autoridades para ter essa visão, essa virtude de, ao perceber que tá fazendo algo que foi além do esperado, voltar atrás”, comentou. “Vamos trabalhar, o brasileiro quer trabalhar. Vamos deixar em casa o vovô e a vovó, tratar com o devido respeito. A gente tava decolando na economia. Criamos quase 1 milhão de empregos no ano passado, e agora perdemos. Perdemos por que? Porque alguns governadores estão agindo de forma açodada, fazendo concorrência”, atacou.

 

“O vírus vai chegar, vai passar, infelizmente algumas mortes terão, paciência. E vamos tocar o barco, porque as consequências, depois dessas medidas equivocadas, vão ser muito mais danosas do que o próprio vírus”, reclamou Bolsonaro. Importante lembrar que, passados um mês das colocações e com o aumento de 5.353% no número de brasileiros mortos pelo coronavírus, o presidente não apresentou, até hoje, nenhuma medida que possibilite o isolamento somente dos idosos. Provavelmente porque, diante do cenário e das condições do país, essa medida simplesmente não exista. E “deixar em casa o vovô e a vovó” signifique levar o vírus para o lar e colocá-los em risco da mesma forma.

 

Foi um pouco depois que o ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, e o deputado e ex-ministro da mesma pasta, Osmar Terra, conspirando contra Mandetta, fizeram estimativas sobre o número total de mortos. No pior dos cenários, disseram em conversa flagrada pela CNN, 4 mil brasileiros e brasileiras morreriam. Acabaram, como dissemos no artigo anterior, desmentido pelos fatos.

 

Esta terça (28/4), o número de mortes ultrapassou o da China, primeira a enfrentar o vírus e sem as informações que o Brasil tinha quando a contaminação chegou ao país. Manaus vive um pesadelo com covas coletivas e o sistema de saúde saturado, e o governo, em vez de focar no combate, segue criando crises. Podem até argumentar que o Brasil mudou muito nesses 31. Mas se mudou realmente, isso se deve aos efeitos da pandemia, que já eram esperados. E Bolsonaro, o que dirá sobre a maneira como tratou o coronavírus para as famílias dos mortos, muitos deles seus eleitores?